Agora vêm mais uma vez inquietá-los e o curandeiros dos clãs de terra firme da ponta do recife pintaram na gruta dos wandjina da sua tribo imagens dos pássaros de madeira com asas brancas que trazem de novo sobre as águas os espíritos brancos do mundo dos mortos. E ele preparara-se cuidadosamente para a luta, lançando mão aos mais poderosos rituais encantatórios para proteger o seu povo.
Hoje terão lugar as últimas e mais importantes cerimónias de iniciação dos mancebos da tribo para a sua passagem à idade viril e das raparigas à puberdade a fim de receberem homem, para as quais se vinham preparando há muitas luas. O Curandeiro não pode permitir que os espíritos maléficos ensombrem a cerimónia, por isso escolhera um lugar secreto onde preparara a grande fogueira para limpar e purificar todos os neófitos com o seu fumo. Usara as duas matracas sagradas oferecidas pelos Espíritos Ancestrais, que pertenciam à sua família de Curandeiros há muitas gerações, para que a cegarrega estrepitosa dos seus sons expulsasse as forças maléficas do lugar. Fariam a dança da vitória do povo contra os wandjina de pele de crocodilo e tartaruga, com os seus paus-de-fogo de ferro e lança-dardos de estranha forma. Quanto ao resto, dependeria da protecção dos wandjina tutelares.
O canto e a dança iriam trazer consolo às raparigas que, após o seu primeiro sangue, haviam recebido as escaras da puberdade; porém, nem o pensamento de serem finalmente desfloradas pelos parentes, livres para se deitarem com qualquer moço que desejem para marido, as deixa esquecer as dores terríveis causadas pelas incisões da faca de pedra nas nádegas, agravadas pela areia que lhes tinham lançado nos lanhos para fazer as escaras maiores e mais belas. A provação por que passam serve para as ensinar a sofrer a dor com coragem, por isso, a muito custo contêm as lágrimas e os gemidos. O verdadeiro consolo vem-lhes do pensamento de quão mais atrozes são os rituais de iniciação a que se submetem os rapazes, no lugar secreto que elas não podem conhecer.
Do remoto campo sagrado não lhes chegarão gritos nem choros dos neófitos, que sofrem sem um gemido as dores do ritual da sua passagem ao mundo dos homens. Já todos têm as escaras no peito, ombros, braços e nádegas a cicatrizarem, mas ainda assaz dolorosas, contudo a nova dor do sexo aberto abafa qualquer outro sofrimento. No centro da clareira o último dos rapazes está deitado de costas sobre os corpos do pai, do tio e do irmão. Em menino já fora circuncidado, trazendo amarrado aos cabelos a pele do prepúcio, pele maléfica em forma de asas de morcego que o oferecia à morte. Agora fará o ritual da sua confirmação.
O Curandeiro levanta-lhe o pénis e faz-lhe por baixo uma incisão com o estilete de pedra, rasgando a pele a todo o comprimento e com ela o canal da urina, pondo a descoberto a massa de carne vermelha e sangrenta; o neófito estremece violentamente, aperta o bumerangue que tem na mão até os dedos ficarem brancos, para suster a dor, mas não solta um som. O pénis aberto é comprimido contra uma pedra, para o fazer mais leve e mais belo.
Os parentes ajudam-no a erguer-se e levam-no até à fogueira purificadora para que o sangue escorra até ao fogo e cinzas quentes são lançadas sobre a ferida, que depois será tratada com gordura de emu. O mancebo junta-se aos que como ele se tornaram homens e vão partir sós para viverem nos matos, sem poderem comer serpentes, opossuns ou lagartos, até as feridas sararem por completo.
Isto fizeram os wandjina pela primeira vez abrindo e soltando o seu pénis para com ele poderem lançar relâmpagos e coriscos de fogo. Assim o jovem iniciado poderá fulminar os seus inimigos com o raio e fazer o fogo que alimenta a vida.
No recinto da praia, purificado pelo fumo da fogueira, o tocador sopra no comprido tubo do didjeridu um longo lamento, as mulheres e as crianças cantam em voz baixa, fazendo música com dois paus ou bumerangues e marcando o ritmo ora com palmadas nas coxas, ora agitando folhas de árvores para simularem a passagem do vento nas penas da emu ou o restolhar de um animal assustado. Música, palavras e movimentos que fazem parte do Corroboree de canções e danças que contam as batalhas para conhecimento das gerações vindouras, recebidos pelos Criadores de Canções nos seus contactos com o Mundo Subterrâneo. O combate da praia já faz parte da gesta do povo e também da herança do Curandeiro, como todos os mistérios e ritos que remontam aos Espíritos Ancestrais da Era do Sonho e foram ensinados a sucessivas gerações de Curandeiros e enriquecidos pelos Criadores de Canções a cada novo sucesso digno de ser lembrado e celebrado.
Os guerreiros e caçadores alinham-se de frente para o mar, armados de lanças e escudos, os corpos cobertos por pinturas brancas, com penas coladas à pele, em intrincados padrões de guerra. Como um só homem, batem com os pés no chão, gritando os seus insultos aos inimigos, segundo o ritual ensinado pelo Curandeiro; os mais valentes avançam um a um, fazem o elogio da sua bravura, enumerando as suas proezas e lançando desafios às duas grandes canoas que se acercam, vindas do recife.
Cada embarcação traz à proa um grosso tubo feito de casca de árvore, figurando o pau-de-fogo dos wandjina invasores, os seus trinta ocupantes cantam e remam vigorosamente para a praia, onde desembarcam de um salto, puxando as canoas para terra. Vestem couraças feitas de casca de árvore, que lhes cobrem a cabeça, o peito e as coxas86 como peles de crocodilo e de tartaruga, vêm armados com espadas compridas de madeira e lançadores de dardos. O chefe dos guerreiros da praia e o cabeça dos wandjina invasores travam um diálogo cantado, para saber quem são, de onde vêm e o que pretendem.
O didjeridu solta o som grave e ameaçador do trovão, as matracas estralejam, as mulheres batem com as conchas em uníssono: são os estrondos dos paus-de-fogo das proas das canoas que desferem os seus raios e desencadeiam a batalha. Os guerreiros atiram uma chuva de lanças sobre os Homens-Crocodilo que despedem os seus dardos e carregam sobre eles agitando as espadas. Os guerreiros tombam, os wandjina também, atravessados pelas lanças. Os estrondos sucedem-se, muitos guerreiros caem sem vida e os Espíritos Brancos cantam vitória. Há combates singulares, com cânticos de morte ou de glória. O coro entoa as peripécias da batalha e a valentia dos heróis para animar os guerreiros que, com renovado ímpeto, lutam encarniçados até o último invasor ser vencido. Na praia pejada de mortos, os vencedores festejam o seu triunfo.
86 Imitavam os elmos e as couraças (e também as espadas e bestas que lançavam virotões) dos portugueses, na descrição da dança observada por H. V. Horne, em 1909, na ilha onde mais tarde se acharam os canhões do século XVI com o escudo de Portugal, transcrita em Para além do Capricórnio, de Peter Trickett.
VI
Não penses que não há crocodilos, só porque a água está calma
(malaio)
Lenda da origem das guerras entre os reinos de Bata e de Achem:
Uma manhã, el-rei de Achem avistou, a Este, uma luz azul muito brilhante e os seus espiões disseram-lhe que era o fulgor da bela princesa Puteri Ijo, filha d’el-rei de Deli Tua, das terras altas dos Karo. O impetuoso senhor de Achem, enamorado dela, mesmo sem a ver, enviou-lhe um emissário com o seu pedido de casamento e um riquíssimo presente. Como a princesa o recusasse, cheio de paixão, el-rei decidiu subjugá-la pela força das armas e invadiu-lhe o reino.