Os exércitos travaram uma crua batalha, sendo a vitória do primeiro combate dos dois poderosos irmãos de Puteri Ijo, um canhão e uma monstruosa serpente. Contudo, o enamorado rei de Achem recorreu a um ardil e lançou moedas de prata em lugar de pelouros contra as hostes de Deli Tua; maravilhados, os soldados abandonaram os seus postos de batalha e correram a apanhar o inesperado tesouro. Só o canhão, irmão de Puteri Ijo, continuou a lutar até o seu corpo ficar abraseado e sedento; então bebeu água e rebentou.
Derrotado o exército, o irmão-serpente refugiou-se no mar e Puteri Ijo ficou cativa dos achens e seria levada num navio para o reino do futuro esposo. Pediu para ir dentro de uma caixa de vidro e que cada família de Achem deixasse de oferta, no porto de desembarque, uma mancheia de cimpa – a mistura de farinha de arroz e açúcar de cana – e um ovo de galinha.
Ao desembarcar, vendo as pilhas de ovos e de cimpa, a princesa mirou o mar e murmurou umas palavras. Uma inesperada tempestade resolveu o céu e as águas dando passagem à monstruosa serpente que rastejou para junto da irmã e engoliu todas as ofertas. Então, Puteri Ijo montou no seu dorso e ambos mergulharam nas ondas para não mais serem vistos.
(A história de Puteri Ijo, conto de tradição oral)
O rei dos Batas regressara ao reino muito triste pelo mau sucesso daquela guerra e da grande mortandade feita pelo inimigo no seu exército, afora outros tantos feridos e queimados das bombardas e minas. No entanto, o resultado deveria ter sido diferente, visto que no primeiro dia de batalha obtivera uma vitória retumbante sobre os achens cujo exército pusera em fuga.
No dia seguinte, vendo que os inimigos tinham levantado o arraial, decidira seguir a vitória e, depois de enviar para casa todos os feridos que não estavam em condições de pelejar, prosseguira para a cidade muralhada onde se abrigara Alaudin, o rei de Achem, com o que restava do seu exército. Queimara duas grandes povoações e ainda quatro naus com dois galeões turcos que estavam varados em terra, lançando-se em seguida ao assalto dos muros da cidade com oitenta escadas, à escala vista, apesar da artilharia com que o inimigo varejava o rio de Penacão. Tomara os primeiros bastiões das defesas, dando morte a todos os que achara dentro, com poucas perdas dos seus homens.
Durante vinte e três dias tivera a cidade cercada, mas os batas, muito ufanos das vitórias do início, julgavam-se invencíveis e atacavam a cidade sem ordem nem acerto, pelo que não tardaram a cair numa cilada que lhes armaram os achens, com uma falsa saída, atraindo-os a uma mina que haviam preparado com muita pólvora e à qual deram fogo. A explosão atirara pelo ar o capitão bata com trezentos dos seus homens, feitos todos em pedaços, com um estrondo e fumaça tão espantosa que parecia um retrato do inferno, segundo contavam os sobreviventes.
O rei de Achem saíra logo em pessoa da cidade com mais de cinco mil amoucos87 que acometeram os batas, com um ímpeto de possessos dispostos a vencer ou morrer e, a coberto do fumo da pólvora, fizeram o exército de Timorraja bater em retirada para o morro de Minacaleu, deixando atrás de si o campo coalhado de mortos.
A esperança da vitória, se alguma ainda tivera, recebeu o golpe final com a chegada ao rio de Penacão da armada dos achens, de oitenta e seis navios, que regressava de Tenassarim aonde fora fazer guerra ao rei do Sião. Aconselhado pelos seus oficiais e ministros, Timorraja abandonara Achem e regressara a Panaju, onde desfizera o seu exército e partira numa pequena lanchara pelo rio acima, acompanhado somente por três homens da sua confiança, em busca de refúgio para a sua humilhação e dor, no pagode de Guinasseroo, o Deus da Tristeza, onde permanecera catorze dias encerrado, para expiação das suas culpas.
De regresso a Panaju, mandara chamar Fernão, que estava no jurupango com Coja Ale, para saber se a venda das mercadorias fora feita a seu contento.
– O meu Xabandar assegurou-me que a fazenda do capitão de Malaca foi bem negociada. Dizei-me se alguém vos ficou a dever alguma cousa, que eu vo-lo mandarei logo pagar porque não quero que à custa da minha honra se pragueje em Malaca dos mercadores de Panaju, por não terem verdade no que tratam, nem rei que os constranja a pagarem o que devem.
– Graças às mercês e favores que Vossa Alteza nos fez – responde-lhe Fernão, com os gestos de cortesia dos batas que já cumpre sem falhas –, os mercadores pagaram tudo o que nos deviam. – E com grande proveito, como esperava Pêro de Faria, pensa para si mesmo, acrescentando, para confortar o rei, uma daquelas promessas próprias de embaixador de um grande reino: – O capitão de Malaca em breve vos pagará a mercê vingando-vos de Alaudin e restituindo-vos as terras tomadas pelos achens.
Timorraja olha-o nos olhos, esboçando um sorriso amargo:
– Ah, português, português, rogo-te que não me tomes por tão néscio que creia nas vossas promessas! Como poderá socorrer-me quem em trinta anos se não pôde vingar a si? Nem o vosso rei, nem os seus governadores conseguiram castigar este inimigo, quando vos tomou quer a fortaleza de Pacem, quer a galé que ia para as Molucas, as três naus em Quedá, um galeão de Malaca, quatro fustas com duas naus que vinham de Bengala e outras muitas embarcações que agora me não vêm à memória, em que me afirmaram terem os achens morto mais de mil portugueses, afora a presa riquíssima que tomaram nelas, sobretudo de armas que usaram para me destruir. Daí, português, eu ter muito poucas esperanças nas vossas palavras, basta-me ficar como fico, com três filhos mortos e a maior parte do meu reino tomada, e vós na vossa Malaca não muito seguros88.
Fernão sente o sangue subir-lhe ao rosto, de vergonha e embaraço, com o remoque certeiro de Timorraja, incapaz de esboçar qualquer protesto ou justificação, jurando no seu íntimo que não voltará a falar-lhe de socorro e ainda menos a fazer-lhe promessas em nome de Pêro de Faria ou de quem quer que seja, sabendo de antemão que não serão cumpridas.
– Se já nada mais tens a fazer aqui, não percas tempo em partir, pois a monção está no fim e poderás achar no golfão grandes calmarias que te levem a Pacém, donde te Deus guarde, porque te afirmo que, se por mofina sorte lá fores ter, vivo te haverão de comer os achens aos bocados, o próprio rei mais que todos, porque jurou ao seu Mafamede, da casa de Meca, beber o turvo sangue estrangeiro dos malditos cafres sem lei, do cabo do mundo, usurpadores de reinos alheios nas terras da Índia e ilhas do mar, pois é assim que ele vos nomeia. Diz de minha parte ao capitão de Malaca, que vigie bem este inimigo achem, porque em nenhuma outra cousa imagina, senão em como vos há-de lançar fora da Índia e meter nela o turco. Isso lho escrevi também nesta carta de resposta à sua embaixada.
A carta vai acompanhada de um riquíssimo presente para Pêro de Faria e, ao despedir Fernão com todas as honras, Timorraja oferece-lhe dois cates89 de ouro e um pequeno terçado com embutidos preciosos no punho. O embaixador Aquarem Dabolai vai acompanhá-lo com escolta de honra até ao jurupango, onde o espera Coja Ale, que logo manda levantar ferro e seguir para a povoação de Batu Rendang, onde tinham esperado pelo chamado do rei.
À chegada, Fernão travara amizade com o rajá do povoado e tem esperança de poder empregar uma parte do seu ouro na compra de benjoim ou pimenta, a melhor preço do que em Panaju, o que lhe permitirá fazer bons tratos em Malaca ou no Sião. Além disso, deseja saborear de novo um naco de búfalo do rio como o que então comera, cozinhado lentamente em leite de coco com especiarias, acompanhado de arroz, que lhe fizera chupar os dedos deliciado.
O chefe tinha-lhe contado uma história sobre o nome do seu povo e a razão para os telhados das casas terem a forma dos cornos de um búfalo, curvos no meio, de pontas reviradas para o céu nos dois lados. Os minangkabau, cujo nome significa búfalo vencedor, eram assim chamados por causa de uma famosa batalha entre o seu povo e as forças do império Majapahit.