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Quando os dois exércitos se achavam frente a frente, para não haver grande derramamento de sangue das duas partes, foi decidido que uma luta de morte entre dois búfalos ditaria o resultado da contenda. O príncipe do Majapahit escolheu um verdadeiro touro de combate, enorme e feroz, enquanto a tribo dos minangkabau apresentou uma cria de búfalo esfaimada, a cujos minúsculos cornos tinham atado lâminas aceradas de punhais. Assim que soltaram os animais, o vitelo faminto correu em direcção ao gigantesco búfalo para mamar, tomando os testículos por úberes. O grande macho não lhe prestou atenção, à espera de um adversário condigno e a cria, ao enfiar-lhe a cabeça por entre as pernas à procura de leite, espetou-lhe as facas na barriga e esventrou-o. Desse modo, os minangkabau saíram vitoriosos da guerra.

Chegam a Batu Rendang em boa hora, porque no dia seguinte vai haver celebrações no povoado, para festejarem senão a vitória pelo menos o regresso a casa dos homens que tinham combatido os achens. Fernão sabe por experiência que, em Samatra como nas aldeias de Portugal, não se fazem festas sem abundantes comezainas e vinho generoso, que no presente caso será rendang de búfalo regado com tampoy, o vinho feito de um fruto de casca grossa cor de canela. O rajá, sabendo da nova visita do embaixador de Malaca, há-de convidá-lo para comer a seu lado e assistir a todas as celebrações.

Batu Rendang sofrera algumas mudanças, decerto por medo dos achens, que constituíam agora uma real ameaça. A povoação está rodeada por uma cerca muito alta e forte, com portões que só se abrem para dar passagem a carroças e gado, tendo os aldeões de subir por uma escada móvel de canas e descer por outra, para entrarem ou saírem do recinto. Os portões abrem-se, todavia, para dar passagem ao embaixador Fernão Mendes Pinto e, quando ele entra, seguido de Coja Ale e do língua, o rajá vem ao seu encontro para o receber com as devidas cortesias e tomar o saguate ao seu hóspede.

O festim tem lugar na praça principal, numa espaçosa clareira com inúmeras esteiras de uma espécie de juncos ou caniços muito macios que parecem feitos de pano ou lã. Fernão vê um grande braseiro junto de uma estaca, onde será atada a rês que será sangrada e talhada em partes para serem assadas nas brasas, como é de uso naquelas partes. As mulheres dispõem vasilhas de arroz fumegante e recipientes que o língua lhe diz serem de um molho de suco de limas, sal e pimenta vermelha.

É um ajuntamento de toda a população de Batu Rendang, embora as mulheres se mantenham afastadas e o chefe conduz os hóspedes ao lugar de honra onde estão sentados os anciãos e homens principais com insígnias de chefes de outras tribos ou clãs. Sente-se um frémito de excitação na assistência, sobretudo dos guerreiros em trajos de combate, no modo como falam, movem os corpos ou agitam os crises e Fernão alvoroça-se também, com a ideia de assistir a um combate entre os homens ou destes com o búfalo, tão ao gosto dos jaus.

De súbito, faz-se silêncio, a multidão arreda-se para dar passagem aos guardas que conduzem um guerreiro achem, cativado na guerra pelos valentes soldados de Batu Rendang.

– Ninguém pagou o seu resgate – diz-lhe o língua, enquanto o prisioneiro é atado de pé à estaca. – Foi condenado à morte.

O guerreiro que o capturou avança, empunhando o cris e diz à assistência que o cativo é um infame, um covarde que matou à traição alguns dos melhores combatentes do seu clã, uma fera que não merece o nome de homem.

Todos os minangkabau sacam os crises, gritando por vingança e alguns guerreiros atiram-lhe lanças que o ferem em várias partes do corpo, sem lhe arrancarem um grito. O rajá acerca-se do prisioneiro, com o seu punhal desembainhado e corta-lhe um pedaço de carne do peito, que leva à boca, bebendo com prazer o sangue que dele escorre; depois, molha-o na salmoura, passa-o pelas brasas e come-o, vindo sentar-se no chão, sobre os tapetes de junco, entre Fernão e Coja Ale, ambos pálidos e mareados de morte.

É o sinal para que todos se lancem sobre o cativo, cortando-lhe pedaços de carne que comem crus ou assam na fogueira. Os gritos que a vítima solta, por fim, não os fazem parar, durando o tempo de três Ave Marias e dois credos, até ficar desacordado e morrer, descarnado até ao osso.

Algumas mulheres acercam-se do rajá, transportando vasilhas de arroz cozido onde foi misturado o sangue do guerreiro e uma travessa com as principais iguarias para honrar os seus convidados – o seu coração, nariz, orelhas, palmas das mãos e solas dos pés.

87 Do malaio amuk, que significa loucura furiosa, cólera, relacionado com práticas de magia e crença na invulnerabilidade às armas inimigas.

88 Peregrinação, capítulo XVII.

89 O cate chinês corresponde a cerca de seiscentos gramas.

LIVRO IV

MAR DA CHINA

CATAIO

Das mais cousas que vimos.

Destas grandezas que se acham em cidades particulares deste império da China, se pode bem coligir qual será a grandeza dele todo junto, mas para que ela fique inda mais clara, não deixarei de dizer (se o meu testemunho é digno de fé) que nos vinte e um anos que duraram os meus infortúnios, em que por vários acidentes de trabalhos que me sucediam, atravessei muita parte da Ásia, como nesta minha peregrinação se pode bem ver, em algumas partes vi grandíssimas abundâncias de diversíssimos mantimentos que não há nesta nossa Europa, mas em verdade afirmo, que não digo eu o que há em cada uma delas, mas nem o que há em todas juntas vem à comparação com o que há disto na China somente. E a este modo são todas as mais cousas de

que a natureza a dotou, assi na salubridade e temperamento dos ares, como na polícia, na riqueza, no estado, nos aparatos, e nas grandezas das suas cousas, e para dar lustro a tudo isto, há também nela uma tamanha observância da justiça, e um governo tão igual e tão excelente, que a todas as outras terras pode fazer inveja, e a terra a que faltar esta parte, todas as outras que tiver, por mais alevantadas e grandiosas que sejam, ficam escuras e sem lustro.

(Peregrinação, capítulo XCIX)

I

Podemos escolher o que semear, mas somos obrigados a colher aquilo que plantámos

(chinês)

Da Carta dos Tanigores de Nanquim90 aos seus Irmãos de Pequim:

Nós, servos desta santa casa, na quinta prisão do Nanquim, fazemos saber a vossas pessoas o seguinte:

Os nove estrangeiros que esta carta vos darão são homens de terras muito apartadas, cujas fazendas e corpos o mar consumiu com seu bravo ímpeto, que de noventa e cinco que eram, só esses coitados lançou na praia dos ilhéus de Tautaa. E vindo com as suas carnes chagadas, pedindo esmola de lugar em lugar, foram presos sem razão nem justiça, pelo Chumbim de Taypor e mandados a esta prisão, onde os condenaram a pena de açoutes de que logo se fez neles execução, como no processo da sua sentença vai tratado. E querendo-lhes mais, por desordenada crueldade, cortar ambos os dedos polegares das mãos, nos pediram ajuda com infinitas lágrimas.

Acudindo nós a tanto desamparo, nos queixámos logo à Mesa dos Vinte e Quatro da Austera Vida, os quais, com zelo santo, se ajuntaram todos na Casa do Remédio dos Pobres. Pelo que revogando a sua primeira sentença, remeteram a causa à vossa cidade de Pequim, com emenda na segunda tenção, pelo qual vos pedimos que em tudo olheis ao que convém a estes nove estrangeiros, por que não se perca a sua justiça, o que para nós todos será vergonhosa infâmia. E também os ajudeis com vossas esmolas e cubrais suas carnes, para que não pereçam ao desamparo.

(Peregrinação, capítulo LXXXVII)

Foi provavelmente no Outono de mil quinhentos e quarenta ou quarenta e um, que Fernão Mendes Pinto entrou no porto da grande cidade de Pequim.

Mais difícil, mas não impossível, seria o ano de quarenta e dois, porque, no instante desta narração, o tempo real dos acontecimentos já se esbateu há muito na névoa do Passado, tanto para o protagonista que os registou vinte anos depois de os ter vivido, como com mais razão para a presente narradora, volvidos quinhentos anos.