Talvez a imprecisão temporal se tenha ficado a dever aos muitos meses de contínuo sofrimento a que os nove portugueses, sobreviventes do naufrágio, estiveram sujeitos no tronco de Nanquim, onde perderam toda a noção da passagem do tempo, com os dias a sucederem-se sempre iguais. Assim, a narradora pede ao seu leitor que dele se abstraia também para que, com maior liberdade, possa seguir as peripécias deste relato.
Pinto mal pode crer que atravessou, de sul a norte, o Celeste Império – a celebrada Cataio que Cristóvão Colombo julgou erradamente ter descoberto quando aportou às Antilhas –, uma nação tão vasta que ir e vir da falda do mar até à corte do Filho do Céu leva mais de cinco meses de caminho por terra. Por essa razão, e também por haver muitos salteadores de estradas, a maior parte das viagens faz-se através da imensa rede de rios e canais, em paraus91 ou juncos ligeiros como aquele em que tinham navegado.
Os náufragos vão remetidos ao tribunal do aytao dos aytaos, o intendente dos mares em Pequim, para apelação da sentença e da execução da pena a que foram condenados em Taypor, cidade onde os prenderam por vagabundagem. Em Nanquim não se tinham livrado das vergastadas, contudo, graças à carta dos tanigores, os Irmãos da Misericórdia que os socorreram na enfermaria do tronco, guardam uma ténue esperança de escapar à amputação dos dedos, se a sua apelação for atendida.
Durante a longa viagem pelo rio Batampina92, haviam gozado de alguma liberdade, porque o chifuu, o alcaide que comandava o junco, como trazia a mulher prenhe e muito fraca, fizera uma navegação vagarosa com paragens em muitos lugares, nos quais lhes dera permissão de desembarcar, sempre escoltados por guardas, para irem pedir esmola e ganharem o seu sustento.
A viagem fora um passeio de desenfadamento, comparada com o que os aguarda agora no cais, com todo o aparato da justiça imperial, conjurando de novo o pesadelo dos cárceres de Taypor e Nanquim onde vários companheiros perderam a vida, consumidos de piolhos e prostração ou esvaídos em sangue dos açoites, de que os sobreviventes traziam ainda nas nádegas e nas pernas o bordado a ponto cheio das suas roxas cicatrizes.
Desembarcam primeiro os trinta prisioneiros chins, presos de três em três, com cangas ao pescoço, algemas nos pulsos e umas correntes muito compridas que se fecham nos grilhões dos tornozelos. Como os estrangeiros vêm condenados por vagabundagem e furto, crimes sujeitos a pena de morte, um lauteaa ou mandarim, trajado com a comprida túnica de seda preta e mangas largas, própria do cargo, aguarda-os sentado na sua liteira, com uma escolta de soldados e o transporte destinado a criminosos do seu jaez.
Cuidava Fernão que o pior dos castigos, sofridos durante a sua desgraçada odisseia, fora a canga que ainda lhe dobra a cerviz, uma pesada tábua de um palmo de largo, fendida em duas partes de modo a formar numa das pontas um buraco redondo onde à justa cabe o pescoço do preso. Fechados os dois pedaços, a tábua ficava um palmo acima do cachaço, por trás da cabeça, com a parte dianteira a cair sobre o peito, descendo até aos joelhos, impedindo o condenado de dormir e também de comer, por ter as mãos presas por baixo dela. Na parte frontal tem escrito em letras grandes o pregão dos crimes e respectivas sentenças dos folangji, os bárbaros estrangeiros.
Este suplício, todavia, não se pode comparar à nova ignomínia a que os submetem os guardas, enfiando cada um deles, com muitos brados e algumas chibatadas, dentro de sua gaiola de canas de bambu pouco mais larga do que o hóspede, forçando-o a agachar-se sobre um pequeno banco de ripas, com a cabeça fora do alçapão. As tampas, ao cerrarem-se de cada banda, deixam um buraco no meio para o pescoço, de tal modo que o preso não pode bulir daquela posição, virar a cabeça ou metê-la para dentro para comer e, se quiser fazer as suas necessidades, tem no fundo um buraco para se aliviar à vista de todos. Enfiada cada gaiola numa vara comprida que dois homens tomam aos ombros, o mandarim fecha as cortinas da cadeira e dá ordem de partida aos seus quatro carregadores.
– Huuph! Huuph! Dai lugar! Guarda ao lauteaa! – bradam os oficiais, um bom espaço à frente e de cada lado da rua, anunciando a passagem para afastar os transeuntes.
Os escrivães e outros ministros da justiça rodeiam a cadeira, esfalfando-se para acompanhar o trote dos carregadores, fazendo balançar os penachos de pavão e as fitas vermelhas com grandes borlas nas pontas dos toucados; atrás, em passo de corrida, seguem os guardas com os prisioneiros a pé, metidos numa corrente e, na cauda do cortejo, os portadores com as gaiolas dos folangji mais os seus guardiães.
Apesar da misérrima condição a que os Fados o condenaram, Fernão pasma com tudo o que os seus olhos vêem, quase esquecido dos solavancos, causados pela andadura rápida dos portadores, que ameaçam afogá-lo. Imagens prodigiosas de gentes e de espaços vêm sobrepor-se às das sevícias sofridas no tronco de Nanquim e também do naufrágio da panoura a remos em que andara no corso sob as ordens de António de Faria, cujo junco desaparecera sem deixar rasto. Fernão perdera todos os seus bens, uma fortuna considerável ganha com assaz de perigo e trabalhos, em cujo cômputo entrava a Noiva Roubada. Uma pérola sem preço que ele amara com paixão e mágoa, cuja recordação o atormenta sem descanso, deixando-o por vezes como um semivivo, entorpecido por uma dor maior que a dos tormentos do cárcere.
Ali, as novidades que se lhe oferecem são tantas e tão variadas que não deixam lugar para nenhuma outra coisa. Beijing ou Pequim, cabeça da província de Xutianfu, merece o nome de Metrópole da Monarquia do Mundo pela sua abastança e civilização, sem igual entre as capitais da Europa ou do Oriente, como Fernão pode observar da sua gaiola. Nanquim, de onde vêm, outrora considerada a maior cidade do mundo, já não pode competir em importância e grandeza com esta imensa urbe, em cujo âmago vive o rei da China.
As ruas por onde segue o infausto cortejo são todas direitas, sem lombos nem torturas, as principais mais largas do que a rua Nova dos Mercadores dos Ferros, em Lisboa, de uma légua de comprido, bem empedradas e pavimentadas, ladeadas por formosa casaria térrea. Nos seus extremos erguem-se os pailós, uns portais semelhantes a arcos de triunfo, com sino de vigia e portas de madeira muito bem ornamentadas, pintadas de vermelho, amarelo e azul, fechadas à noite por um capitão com os seus quadrilheiros, a fim de se preservar a ordem e protecção dos moradores.
Os homens que com eles se cruzam são alvos, de bons corpos, sem barba, com os cabelos longos como os das mulheres, atados no alto da cabeça com um nó atravessado por um prego delgado ou metidos em toucados com forma de cone ou em barretes altos, redondos, de duas abas como asas. A gente comum traja camisa ou túnica de cor e a de mais qualidade usa por cima das túnicas pelotes compridos, pregueados, de mangas muito largas e calçam botas ou sapatos de couro.
As mulheres, que fogem espavoridas à passagem do cortejo, ficando a espreitá-los dos vãos das portas, por trás das árvores ou das colunas dos pailós, são do povo, porque as ricas ou as nobres só saem em cadeiras, levadas em varas por quatro ou mais criados, todas fechadas e cobertas de cortinas, tendo de cada lado uma pequena janela de rede, de modo a poderem ver para fora sem serem vistas.
Bandos de monges de cabeças rapadas, vestidos com panos brancos, tocam cascavéis e recolhem esmolas de comida. A vista dos folangji causa o maior espanto e, logo que passa o andor do lauteaa, a gente acerca-se o mais que pode para mirar as estranhas criaturas de terras remotas e ler as inscrições das cangas. Uns acenam-lhes com amabilidade, outros insultam-nos, atirando-lhes pedras e sujidades ou apupando-os com desprezo.
– Achais-vos mais formosos do que nós? – brada de súbito Jorge Mendes, que de tudo faz chiste, mesmo nas situações mais gravosas. – Por minha fé, que assim desbarbados, salvo por esses míseros cabelinhos nas maçãs da barba ou no bebedouro, os olhinhos pequenos com os lagrimais afastados dos narizes amassados, mais pareceis da parentela do diabo do que criaturas feitas à imagem de Deus.