Fernão ouve-lhe a voz de falsa humildade a burlar-se dos algozes, proferindo doestos como quem reza.
– Cala-te aí, fumoso – brada-lhe no mesmo tom de ladainha –, que já nos meteste em maus lençóis com as tuas chalaças!
– Ui! Cabrões amarelos! Ide sacudir a puta que vos pariu!
Ouve-o lançar os palavrões e, por pouco não faz o mesmo, quando os carregadores chocalham as gaiolas, à laia de aviso, para os fazerem calar. Com as vistas toldadas e quase afogado pelo choque das canas contra o pescoço, solta um gemido lastimoso de – Ai, ai! Pobre de mim!, para os apaziguar.
Os chistes de Jorge já lhes tinham custado alto preço em chicotadas, quando os fizera rir de duas estátuas monstruosas dos deuses do inferno. Três bonzos escandalizados da chacota foram queixar-se ao chifuu, que os mandara atar de pés e mãos e açoitar com cordas dobradas até sangrarem; desde então nunca mais se riram de coisa que vissem, porém aquele desavergonhado parece não ter emenda.
Quando a mulher do chifuu perdeu o filho e a vida durante o parto, na cidade de Iunquinilau, nos cinco dias que passaram a celebrar as exéquias, o viúvo dera de comer e de vestir aos folangji por alma da esposa, libertara-os do castigo do remo e deixara-os ir a terra sempre que quiseram, sem colares de ferro nem algemas, supremo alívio que eles pagaram em orações pelo eterno descanso da defunta que os protegera enquanto pudera.
Mau grado as dores dos ossos e o medo que o atanaza, Fernão procura memorizar todas aquelas novidades, para mais tarde as pôr em papel, como é seu costume, um vício que o impele a escrever, sempre que as circunstâncias lho permitem. Nos troncos de Taypor e Nanquim, quando por duas vezes os tinham despojado dos escassos bens que possuíam, sentira-se o mais afortunado dos presos, por os ladrões terem descartado os preciosos papéis das suas notas como coisa mesquinha e sem valia.
Com a grande quantidade de gente que naquela terra sabia ler e escrever, mesmo no tronco não tivera dificuldade em arranjar penas, tinta e papel, porque tanto os carcereiros como muitos presos lhos davam de boamente a troco das histórias com que, num mau arrazoado em língua chim, procurava satisfazer-lhes a curiosidade sobre os folangji brancos, de grandes narizes e olhos redondos, nunca antes vistos naquelas paragens.
Um solavanco mais brusco arranca-o às suas divagações para a situação de réu de crime grave, parecendo-lhe bem improvável esse futuro como escrevinhador de crónicas, com o reino de Portugal no outro lado do mundo e ele prestes a morrer descabeçado ou de outra pior morte, na China. Para afastar os negros pensamentos, porque, apesar de não ser homem de grande coragem, a sua curiosidade sempre foi maior do que o medo, perde-se de novo na observação do formigueiro humano com que se cruzam, movendo a cabeça, qual galo pescoçado, o mais que lhe permite o buraco da gaiola.
É-lhe contudo difícil não estabelecer comparações com acontecimentos da sua vida passada e os grilhões que lhe pesam no corpo lembram-lhe outros, lançados por corsários mouros e gentios, quer no longínquo mar Roxo, quando fora pela primeira vez vendido como escravo em Mocaa, quer em Pegu, ao serviço do capitão de Malaca, Pêro de Faria. Arrependera-se mil vezes por ter embarcado na perigosa aventura do corso com António de Faria, porém, quando se vira sem um vintém de seu e com mais de quinhentos cruzados de dívidas, depois do roubo do pirata Coja Acem, não achara outro remédio para a sua penúria senão andar às presas para alcançar alguns proventos. Assim se fizera bom conhecedor dos meandros das derrotas comerciais dos mouros de que os portugueses se haviam apropriado, visitando os lugares que eram escalas obrigatórias nas viagens de cabotagem, resgatando os seus produtos e levando-os de uns portos para os outros, com grossos lucros.
Agora, se bem que nas piores condições, desvendava os segredos da misteriosa e cobiçada Cataio, de onde provinha o almíscar, o ruibarbo, a pedra-ume, as sedas, cetins e damascos mais belos, as porcelanas e os móveis preciosos, pacientemente trabalhados como jóias. Só nesta viagem de Nanquim a Pequim, navegara cento e oitenta léguas pelo grande rio Batampina, maravilhando-se com a fertilidade dos campos, com a riqueza das cidades ou a infinda quantidade de engenhos de açúcar, de lagares de vinhos ou de azeites, agrupados por ruas de duas a três léguas de comprido.
O seu espírito crítico mantém-lhe os pés assentes na terra e Fernão duvida se terá coragem para pôr em letra de imprensa o relato das suas viagens. Teme a invejice dos portugueses, um povo propenso como nenhum outro à murmuração contra os que sobressaem da mediana condição. As calúnias são como setas agudas e brasas acesas para ferir as honras ou abrasar as famas. Terá de precaver-se, para não fazer dúvida a quem o ler, nem dar matéria aos murmuradores, sempre encarniçados a julgar as coisas conforme o pouco que viram e os seus curtos e rasteiros entendimentos alcançam.
O aventureiro estava a ser profeta em causa própria sem o saber, como a presente narradora poderá testemunhar ao leitor. Muito embora, após o seu regresso à pátria e até ao fim dos seus dias, fosse respeitado e consultado sobre as coisas do Oriente pelos mais reputados cronistas do seu tempo e a sua obra tivesse servido de guia a outros viajantes portugueses e estrangeiros durante mais de cem anos, nos séculos seguintes vingaram a dúvida e o cepticismo dos murmuradores invejosos sobre a sua extraordinária Peregrinação e Fernão Mendes Pinto foi rotulado de mentiroso e fantasioso, acusado de falar do que jamais vira e votado ao esquecimento.
Denunciada a injustiça, retomemos a nossa narrativa no momento em que a deixámos.
Com um coro de gritos, o cortejo pára de súbito diante das portas da prisão de Gofanjauserca e Fernão sente de novo o aperto do medo a sufocá-lo. O chifuu deixa-os com o lauteaa e segue para a pilanga do aytao ou tribunal da relação, a fim de entregar aos Doze Conchalys da Mesa do Crime – os desembargadores e juízes de apelação com alçada suprema –, o processo da sentença dos nove estrangeiros, o qual vem fechado com doze sinetes de lacre. Chegavam ao fim da sua jornada e as portas do Inferno abriam-se diante deles com a promessa de infindos tormentos e apenas a esperança da morte como libertação.
90 Enseada de Nanquim foi o nome dado pelos europeus a Hangzhouwan (baía de Hangzhou) e ao Donghai (mar de Este/mar Oriental).
91 Pequena embarcação de guerra ou de mercadorias, comparada pelos europeus à galeota e à fusta.
92 Na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Batampina compreende uma parte do rio Yang-tsé e o Pequim-Hangzhou ou Grande Canal (Dayunhe ou Jinghang).
II
Vale mais fazer o bem a quem está perto do que queimar incenso à distância
(chinês)
Da sentença do Anchasi de Nanquim, enviada a Pequim:
Visto o processo das culpas, em que se prova haver dos réus ruins indícios, que estes, por sua parte, não contrariaram em sua defesa cousa alguma e como ao que tinham dito se não podia dar crédito, foi ordenado que por então sejam publicamente açoutados nas nádegas, para que com este castigo emendem suas vidas, e que também lhes cortem os dedos polegares das mãos, com as quais por claras suspeitas se pode bem coligir terem eles feito roubos e males criminosos, merecedores de pena maior, pelo que se apela, por parte da justiça, para o tribunal do aytao da Batampina, a cuja alçada compete.
(Peregrinação, capítulo LXXX)
Os presos são logo conduzidos ao pátio das execuções onde, juntamente com outros condenados, os fazem deitar de bruços, de pernas estendidas e mãos atadas atrás das costas, para receberem os trinta açoites com canas de bambu nas curvas das pernas, por ainda não estarem saradas as cicatrizes das nádegas, obra das flagelações anteriores.