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Dois algozes, postos de cada lado dos condenados, levantam a cana com ambas as mãos e fustigam-nos, um na perna direita, o outro na esquerda, com grande crueza. Fazem em voz alta a contagem, sem se perturbarem com as súplicas, choros e gritos que se vão transformando em uivos de bicho estripado, para aos poucos se fazerem roncos de agonia e silenciarem, à medida que os réus dos maiores crimes, com penas de mais de cinquenta açoites, perdem os sentidos ou a vida.

Há sentenças até de cem açoites, cuja morte é certa, a menos que o condenado possa untar as mãos aos carrascos e guardas, sem os mandarins o saberem, ou aos próprios mandarins, caso o preso seja de grande qualidade com muita fazenda para pagar peitas em prata ou ouro. Nenhum dos nove portugueses é isentado do castigo e Fernão grita, chora e suplica como os demais. Enquanto os algozes fazem a carniçaria, os lauteaas presentes se desenfadam, em animada cavaqueira, comendo, bebendo e esgaravatando os dentes, tão à sua guisa como se estivessem a ouvir música numa casa de chá ou taverna d’el-rei.

Findas as punições, o pátio parece um açougue, com o lajedo coberto de sangue; os portugueses, como não se podem ter de pé, são levados de rojo por uma perna até à enfermaria da prisão e lançados sobre esteiras no chão. Também ali os Irmãos da Misericórdia servem de enfermeiros, aplicando nas chagas lavatórios, mezinhas e uns pós milagrosos que mitigam de imediato as dores.

Nessa noite, mais aliviados do sofrimento mas sem conseguirem dormir, praticam em voz baixa, mantendo-se muito juntos para se confortarem e não serem roubados das esmolas dadas pelos tanigores de Nanquim.

– Temos de concertar muito bem a nossa história – recomenda Cristóvão Borralho. – Se nos desviarmos do que dissemos aos chaens de Taypor e Nanquim, a nossa vida não valerá dez réis de mel coado.

– A nossa sorte depende do Fernão Mendes e do Borralho que falam este linguajar que se me emperra na boca – lembra Álvaro de Melo, acrescentando para os dois visados: – Tratai de defender bem a nossa causa, companheiros.

– Sossegai, pois, como nos tangerem, assi bailaremos.

Cristóvão mostra uma tranquilidade que está longe de sentir e Fernão faz-lhe um sinal cúmplice. São amigos de longa data, unidos por essa fraternidade que a ameaça constante da morte torna indissolúvel. Tinham-se conhecido em Patane, no Sião, e andavam juntos há alguns anos pelos mares da China, quer em missões a mando do capitão de Malaca, quer como soldados mercenários ao serviço dos reis gentios ou ainda na veniaga e no corso com aventureiros da nobreza, como António de Faria, sendo o próprio Cristóvão Borralho um cavaleiro-fidalgo da casa d’el-rei. Navegando meses a fio com as chusmas chins e jaus, tinham aprendido a falar as línguas dos naturais, o que era uma verdadeira dádiva nas presentes circunstâncias.

– Se os mandarins não sentem amor nem piedade pelas suas gentes, muito menos se compadecerão de cossairos93 estrangeiros – reconhece Jorge Mendes. – O povo é mais mal tratado por eles do que pelos diabos do inferno! Por tudo e por nada são metidos em cadeias, açoutados e postos a tormentos das maneiras mais cruéis.

– Por isso esta gente é tão sujeita e medrosa que não ousa falar e menos ainda desobedecer aos seus senhores – apoia Valentim de Alpoim, um veterano das campanhas da Índia. – Sempre os ouvem de joelhos, com a cabeça no chão e o rosto na terra, como se os mandarins fossem relâmpagos que os pudessem fulminar.

– A nós, desculpam-nos por sermos estrangeiros e nunca nos castigaram por não fazermos as cortesias que lhes são devidas – acode Fernão. – Não há dúvida que são cruéis nos castigos, no entanto condenam à morte muito menos do que os nossos juízes. Também não são tão leves no mentir como os nossos e raros aceitam peitas. Fazem justiça tanto aos pobres como aos ricos, até o mais miserável dos homens pode ser ouvido e defender-se, com a ajuda dos Irmãos da Misericórdia. Como aconteceu connosco!

– Justos, eles? Quantas vezes já nos deram açoutes, apesar da apelação da sentença? – berra Joaquim Pereira, de ânimo insofrido e quezilento, sempre disposto a contrariar qualquer partido e a armar querelas. – E dizes tu que não mentem? Bem trapaceiro foi o chaem de Taypor que fabricou as nossas culpas, arrolando testemunhas falsas, além de nos ter roubado tudo quanto tínhamos, que já era bem pouco!

– Ouvimos as queixas dos presos chins, nossos companheiros – retoma Vicente –, de como são esbulhados das suas terras pelo poder dos mandarins e dos capados94 da corte. Se não tem que comer, nem meios de ganhar a vida, como pode esta gente sentir amor pelo rei e seus ministros? Daí que tantos fujam para as montanhas, fazendo-se ladrões ou alevantados contra os seus senhores.

Vicente Morosa, outro veterano de muitas campanhas e homem sisudo que não fala à toa, solta uma risada:

– Quanto às nossas culpas, fabricadas ou não, as acusações até são justas. Meta cada um a mão no peito que achará de que prestar contas. Que andámos nós a fazer nos mares da China, às ordens do capitão António de Faria, senão corso, assaltos, roubos, violações e matanças de gente inocente, quer nos seus barcos quer nos povoados costeiros?

– Para mais em companhia de Quiay Panjão, um cossairo chim! – aquiesce Borralho – Depois da nossa vitória sobre o maldito Coja Acem e da queima do seu hospital, ganhámos tão má fama nas costas de Liampó que, mal tinham rascunho da nossa chegada, as povoações se despejavam de moradores, os quais, com a pressa de fugir, deixavam as suas casas com todo o recheio das fazendas e mantimentos.

– .Que António de Faria mandava recolher e carregar nos juncos – interrompe-o Jorge –, pois já sabia que não encontraríamos naqueles portos quem nos quisesse vender sequer um grão de arroz.

– Deus nos guarde de aparecer algum dos seus capitães ou mercadores com um dos muitos cartazes de salvo-conduto que ele lhes mandou passar, como se fora o governador ou o capitão de Malaca! Se o aytao almirante tiver sequer rascunho dessa arrogância.

– Essa foi de mestre! – bradou Jorge. – Os chins estavam tão cheios de medo que vieram pedir os cartazes e ainda por cima pagaram por eles. Ainda me lembro do teor deles:

Cartaz de Seguro que António de Faria passou aos

Chins, na Cochinchina, em reconhecimento de lhe serem tributários:

Seguro, debaixo da minha verdade, ao Necodá Foão95, para que possa navegar livremente por toda a costa da China, sem ser agravado de nenhum dos meus, com tanto que onde vir portugueses os trate como irmãos.

Outorgado na Ilha de Ainão, no mês de Setembro, do ano de mil quinhentos e quarenta e dois.

António de Faria, Capitão da Armada d’ElRei de Portugal96.

Coja Acem! Fora com grande crueza que António de Faria festejara a sua vitória sobre o odiado corsário que jurara perseguir sem descanso e matar todos os portugueses que passassem ao alcance dos seus navios. O capitão buscara-o com igual determinação, pelos mares da China, e vencera-o em fera batalha, com perda de muitas vidas. Findo o combate, desembarcara na ilha para enterrar os mortos, muitos dos quais portugueses. O desgosto acirrara-lhe a sede de vingança e ao ver, na aldeia saqueada pelo corsário, um templo que servia de hospital a noventa e seis dos seus homens, mandara lançar-lhe fogo por seis ou sete lados, sem atender aos pedidos de misericórdia dos enfermos. Não se dá vida a quem matou tantos cristãos!, bradara enfurecido.

O templo era todo de madeira breada, com tecto de folhas secas de palmeira, de modo que em menos de um credo se fez num braseiro infernal, com labaredas que tudo devoravam. Fernão recordava-se dos gritos horríveis dos acamados e também da cruel morte daqueles que procuravam fugir às chamas, lançando-se pelas frestas que a casa tinha por cima, para virem cravar-se nas lanças e chuças com que os recebiam no ar os portugueses do bando de Faria e os chins de Quiay Panjão, que também queriam vingar a morte dos moradores da aldeia, seus conterrâneos97.