– Quanto a mim, leva a primazia a todas as nossas malfeitorias – lembra Borralho, arrancando Fernão aos seus pensamentos – a profanação das sepulturas da ermida da ilha de Calempluy98, que destruímos para pilhar as jóias de prata e ouro nelas enterradas. Apesar de serem jazigos gentios, fizemos sacrilégio ao desacatar os mortos.
– Cousa de pouca monta – chasqueia Jorge –, visto ser nossa tenção furtar os tesouros dos túmulos dos dezassete reis da China sepultados nessa ilha!
Fernão murmura, com laivos de remorso ou medo:
– Cuido que o desaparecimento da panoura. da galeota do capitão Faria com toda a sua gente, assim como o naufrágio da nossa foram castigos de Deus por esses desmandos e crueldades. Se escapámos com vida foi decerto para expiarmos a nossa culpa com os tremendos trabalhos que temos sofrido nesta terra.
– Longe vá o agouro, homem! – Álvaro de Melo persigna-se. – Eu não tomei parte na pilhagem, por ser o meu quarto de serviço.
– Nanja eu, que estava mareado – acrescenta Gaspar de Meireles.
– Todavia haveis recebido o vosso quinhão do saque, portanto estais também sujeitos ao esconjuro do ermitão! – atiça-os Jorge, com um esgar de zombaria. – Depois de esmechado, unta-lhe o casco.
Joaquim Pereira replica com voz trémula:
– Que outra cousa era de esperar dessa empresa senão desastre? E não foi por falta de avisos, sinais e agouros de desgraça, que desprezámos pela ganância do prémio prometido pelo cabrão do cossairo Similau99 que tão bem nos soube enganar.
– Juro, pelo céu que nos cobre, eu mesmo lhe daria cruel morte naquela noute, na enseada de Nanquim – brada Álvaro de Melo, em voz alta, quase esquecido do lugar onde se acha –, se esse tredo não tivesse fugido do barco para terra. O fideputa cagou-se de medo com o juramento que Faria fez, com a mão nas barbas, de lhe dar morte às punhaladas, por nos meter a todos em tão perigosa aventura e tardar mais de oitenta dias a achar Calempluy.
– Após ele, fugiram trinta e dous dos quarenta e seis chins que levávamos – lembra Fernão, com um suspiro. – Nós bem queríamos volver a Liampó100, porque estávamos em grande perigo depois da fuga da chusma e do Similau, que era o piloto, mas Faria recusou.
– Uns pescadores disseram-lhe que a ilha ficava a poucas léguas do lugar onde nos achávamos – torna Álvaro. – Contai-nos o que haveis feito por lá, Fernão, pois alguns de nós não chegámos sequer a pôr os pés em terra. Sabeis bem contar histórias que nos ajudam a esquecer as dores e os grilhões.
Dores, tem-nas Fernão, bem grandes, mas também acha alívio nesses contos de desgraças e glórias que dão prazer aos companheiros, por isso, aquiesce de boamente ao pedido.
– Posto que tamanho tesouro não deixaria de estar com muita vigia e guarda, houve conselho, assentando-se que o capitão iria primeiro no seu junco rodear a ilha toda por fora, a ver as suas entradas e impedimentos ao desembarque.
– Dessa parte sabemos nós – impacienta-se Gaspar. – Conta o que viste em terra.
– A ilha era um formoso santuário, toda fechada em roda com uma fileira de monstros em ferro, de mãos dadas como se dançassem e o bosque de laranjeiras anãs com as trezentas e sessenta ermidas de que nos falara o tredo do Similau. Um quarto de légua mais acima, sobre um teso, erguiam-se os sete templos com as suas frontarias todas cozidas a ouro de alto a baixo, a cousa mais maravilhosa que vi em toda a minha vida. Houve quem dissesse que tínhamos achado a Ilha do Ouro.
Borralho, sem se conter, toma-lhe a palavra:
– Os espias não viram guardas ou soldados nas ruas, no entanto, desconfiando da fartura, Faria desembarcou com quarenta soldados e vinte escravos, mais o chim que já havia estado na ilha.
– Ouvi dizer que toparam apenas com um ermitão de mais de cem anos de idade, que mal se podia ter nas pernas e ficou tão fora de si que caiu de focinhos ao chão, a tremer de pés e mãos – zomba Gaspar.
– Assi foi, porém, mal recobrou o uso da palavra, teve ânimo para nos amaldiçoar e lançar pragas, quando nos viu a quebrar as campas e revolver os ossos dos defuntos para lhes roubar as jóias! – lembra Valentim, com uma risada. – Apodou-nos de ministros da noite, cães esfaimados aos quais nem toda a prata do mundo poderia fartar. O capitão jurou-lhe que o fazíamos por necessidade daquela esmola, pois tínhamos naufragado e perdido toda a nossa fazenda, que não podia impedir aquela má obra dos seus homens porque eles o matariam, mas prometia pagar-lhe tudo mais tarde. A promessa sossegou-o um tanto, até Faria lhe perguntar quantos homens guardavam os túmulos dos reis da China e o velho perceber que era nossa tenção pilhá-los.
Jorge interrompe, num tom escarninho, a disfarçar alguma amargura:
– O capitão cometeu o erro fatal de o deixar livre na ermida, por ele mal poder andar. Foi tropeçar em cuidados: assi que saímos dali para tornar ao barco a preparar o assalto às outras ermidas e aos túmulos dos reis, o velho foi a rastejar de pés e mãos até à capela mais próxima, cujo ermitão deu o alarme. Em menos de uma hora, começou o martelar dos sinos e, por cima da cerca do Pagode dos Reis, surgiu uma carreira de fogos de aviso. António do Faria ainda desembarcou de madrugada com alguns homens, mas o perigo era muito, forçando-o a bater em retirada, depenando as barbas e dando-se muitas bofetadas de raiva por ter perdido, por seu descuido, tamanha riqueza como aquela.
– Escapámos por milagre do rio e dos perigos de terra – desabafa Valentim – para nos perdermos no mar, a nós e a toda a prata que furtámos com tamanho trabalho!
– Falai baixo, homens de Deus. – geme Francisco Diogo Zeimoto, muito fraco da perda de sangue. Estivera tanto tempo desacordado que já o tinham dado por morto. – Olhai, se nos denunciam.
– Quem? Quantos portugueses crês tu que esta gente viu? – retorque Borralho. – Só aqui estiveram os da embaixada de Tomé Pires, há mais de vinte anos, e mataram-nos a todos. Ou já te olvidaste do que nos contou Inês de Leiria?
Inês de Leiria! Fernão deixa de ouvir os companheiros, esquecendo as dores e o cárcere, quando o seu pensamento o transporta de novo à pequena cidade de Sampitay onde, na viagem pelo rio Batampina, ficaram cinco dias por causa da mulher do chifuu.
93 Corsários.
94 Eunucos que disputavam o poder aos mandarins, os burocratas e letrados da administração chinesa.
95 Fulano.
96 Peregrinação, capítulo LII.
97 Peregrinação, capítulo LX.
98 Ilha de Putuo Shan, no mar da China.
99 Zin Zilao, famoso pirata chinês que foi o primeiro investidor em Liampó/Ningbo, entre 1538 e 1542.
100 Liampoo – Ningbo (China).
III
Não se vanglorie o grande, nem se queixe o pequeno: ondas são que com o tempo crescem e manguam
(português)
Sobre a primeira embaixada dos folangji:
No início de Kia-tsing (1522), o reino dos Folangji enviou um embaixador para oferecer o tributo.
Essas gentes gostavam de comer criancinhas. Dizia-se que, no seu país, só o rei as podia comer; os ministros e os que estão abaixo deles não o podiam fazer. Nesse tempo, os folangji compraram secretamente crianças com mais de dez anos e comeram-nas; compravam cada criança por cem moedas de ouro aos moços vadios do Kouang que as raptavam.
O seu modo de proceder consistia em ferver água numa grande panela e quando ela começava a fervilhar, metiam a criança numa gaiola de ferro, suspendiam-na por cima da panela e escaldavam-na ao vapor, para lhe extrair o suor. Logo que ela perdia todo o suor, tiravam-na da gaiola e com uma escova de ferro raspavam-lhe a pele escaldada. A criança continuava viva. Então matavam-na, abriam-lhe o ventre, retiravam-lhe os intestinos e o estômago, coziam-na ao vapor e comiam-na. Durante dois ou três anos, as crianças raptadas tornaram-se cada vez mais numerosas. Sofria-se com isso tanto perto como longe. O aytao Wang Hong quis expulsar os folangji com tropas.
(T’ien-hia kiun-kouo li-ping chou101)