– As respostas às cartas não chegaram e os prisioneiros morreram – acrescentou Inês, quando Fernão terminou a leitura. – O meu pai veio desterrado para esta cidade, onde conheceu e casou com a minha mãe, que tinha alguma cousa de seu e se fez cristã. Converteram muitos amigos e vizinhos à fé de Cristo.
A chegada dos upos pôs fim ao encontro e os portugueses despediram-se da sua anfitriã com os olhos marejados de lágrimas. Inês entregou aos guardas um presente para a esposa do chifuu, com uma carta onde lhe rogava que intercedesse junto do marido para que os nove condenados pudessem ficar em sua casa durante os dias que passassem em Sampitay.
Conseguido o seu favor, no dia seguinte agasalhou-os a todos com grande conforto e os presos sentiram-se como se estivessem em Portugal, apesar de falarem chim com a sua anfitriã, os criados e os visitantes. Na casa havia um oratório com uma cruz de pau dourada, ladeada por dois castiçais e uma lanterna de prata, onde os nove portugueses se ajoelharam em oração de graças, na primeira noite em que ali pousaram.
– Devido ao trabalho dos meus pais, há agora mais de trezentos cristãos na cidade e todos os domingos nos juntamos para pregarmos a nossa doutrina. Já lhes mandei recado da vossa presença e amanhã teremos aqui reunião, pois desejam muito fazer-vos perguntas, se estiverdes dispostos a satisfazê-los, posto que, afora Tomé Pires, nunca conheceram outros cristãos.
– Não somos clérigos, mas procuraremos responder o melhor que soubermos – promete Borralho.
Vieram todos. Passado o alvoroço da novidade e do relato da sua história, os portugueses responderam às perguntas que, tanto os homens como as mulheres e até os meninos, lhes fizeram. Era já noite quando foram todos postar-se de joelhos diante da cruz, no oratório, para dar graças a Deus por aquele encontro. Os chins, com as mãos e os olhos erguidos ao céu, disseram em coro:
– Senhor Jesu Cristo, verdadeiro Filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo no ventre da Virgem Santa Maria, para salvação dos pecadores, perdoa os nossos pecados para que mereçamos ver a Tua face na glória do Teu reino, onde estás assentado à destra do mui alto Padre nosso que está nos céus, santificado seja o Seu nome. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ámen.
Beijaram a cruz, abraçando-se uns aos outros. Fernão e Cristóvão entreolharam-se pasmados e só não riram porque se sentiam comovidos com a fé daquela comunidade de cristãos no fim do mundo.
– Estas criaturas de Deus não conhecem qualquer oração nem os ritos da nossa Igreja! – murmurou Fernão.
– Podíamos ensinar-lhes algumas preces – alvitrou Borralho, no mesmo tom. – Assim agradecíamos à moça e também a Deus a mercê de a ter posto no nosso caminho.
Despedidos os últimos visitantes, Inês voltou para junto dos seus hóspedes, com um sorriso de felicidade que parecia iluminar-lhe o rosto de feições suaves, tornando-a muito bela. Os portugueses sentiram no ventre e na alma um desejo pela mulher a feri-los como lume.
– Conheceis outras preces, além da que ouvimos há pouco? – perguntou-lhe Fernão, respirando fundo para libertar o nó da garganta.
– Meu pai deixou-me muitas orações escritas, mas foram furtadas pelo meu povo, por isso não sabemos dizer outra, além da que ouvistes – lamentou-se, olhando-os como a pedir perdão.
– Que é muito boa – apressou-se Borralho a consolá-la, numa voz doce como o amigo nunca lhe tinha ouvido –, porém, se vossa mercê quiser, antes de nos irmos de cá, podemos deixar-vos outras para diferentes funções.
– Fazei-o, por esse Deus a Quem tanto devemos – rogou-lhes, de mãos postas e olhos brilhantes.
Durante a sua curta estadia na casa do embaixador, Fernão e Cristóvão, acolitados pelos companheiros, fizeram sete vezes doutrina aos cristãos chins, enchendo-os de um novo ânimo para a sua fé. Inês escreveu num caderno, em letra da China, o Pater Noster, a Ave Maria, o Credo, a Salve Regina, os Dez Mandamentos e muitas outras orações que os dois amigos lhe ditaram.
Toda a comunidade cristã viera assistir à partida dos portugueses, dando-lhes cinquenta taéis de esmola, à despedida, e Inês entregara outros cinquenta a Fernão, às escondidas, rogando-lhe que a encomendasse a Nosso Senhor.
Na véspera, a filha do embaixador visitara a mulher do chifuu (que parecia de melhor saúde e a recebera com muita cortesia) para lhe oferecer um rico presente, em troca da sua protecção para os folangji, assegurando-lhe que eram homens de bem, merecedores de piedade. A mulher, encantada com a oferta, prometera-lhe fazer com que o marido usasse de caridade para com eles e lhes desse bom trato durante o resto da viagem.
A lembrança dos taéis de prata traz de novo Fernão à dura realidade do cárcere de Gofanjauserca, onde jazem. Apalpa o cinto de pano preso ao corpo por baixo da cabaia, mirando em redor, na pálida claridade das candeias, a ver se nenhum estranho se acercou de Borralho e de Zeimoto que guardam as outras duas partes da sua fortuna, que poderá representar a diferença entre a vida e a morte, se os tronqueiros e os escrivães de Pequim forem tão fáceis de peitar como os de Taypor ou Nanquim. Sossegado, adormece apesar dos lanhos em carne viva lhe morderem o corpo como perros raivosos, a cada movimento.
101 Tratado de Geografia Económica da China, do filósofo Kou Yen-wou (1613-1681).
102 Tael ou onça de prata usada como dinheiro na China. Designava também a onça, medida de peso chinesa.
IV
Ser pedra é fácil, o difícil é ser vidraça
(chinês)
Da petição dos folangji, escrita pelos tanigores, ao chaem da Justiça para revogação da sentença:
Por nenhum caso podem ser condenados em pena de sangue, visto não haver testemunhas dignas de fé que os vissem claramente roubar o alheio, nem serem achados com armas nenhumas, como é defeso pela lei do Primeiro Livro, senão nus e descalços como pobres perdidos que verdadeiramente são, pelo qual parece que a sua pobreza e desamparo são mais dignos de um piedoso respeito que daquele rigor com que os primeiros Ministros do Braço da Ira tinham executado neles a pena dos açoutes e que da sua culpa ou inocência só os deuses eram claros juízes, da parte dos quais lhe requeriam uma e duas e muitas vezes que olhasse aquelas cousas que lhe eram ditas e requeridas com seu claro juízo, sem respeitos nenhuns mundanos, perturbadores do fiel da balança.
(Peregrinação, capítulo CI)
Despertam manhã cedo com o rebuliço causado na enfermaria pela entrada do conchaly que vem interrogá-los, um privilégio de que usufruem por serem estrangeiros e a recobrar dos ferimentos, mal podendo manter-se de pé. Como um só homem, os presos chins baqueiam de joelhos, com as mãos erguidas e o rosto de rojo no chão; os portugueses imitam-nos, conforme podem, cerrando os lábios para abafarem os gemidos.
O mandarim da Justiça vem acolitado por dois escrivães e sete upos, cuja vista faz os presos gatinharem às arrecuas, como carochas assustadas, para o mais longe que lhes permite a sala apinhada. Acostumados ao terror que provocam, os oficiais passam, altivos, sem olhar a turba rastejante e param diante dos fan jen, que tremem como se tivessem sezões. O lauteaa senta-se numa banqueta coberta com um pano de seda vermelha que os guardas se apressaram a armar no espaço deixado livre pelos condenados.
– Eu, como um dos Doze Conchalys da Mesa do Crime – declama em tom presunçoso, ameaçador –, pela autoridade que tenho do aytao da Batampina, supremo presidente da Casa dos Trinta e Dois da Gente Estrangeira, em cujo peito se encerra o segredo do Leão Coroado no Trono do Mundo103, vos admoesto e mando da sua parte que me digais que gente sois, em que terra nascestes, se tendes rei que, por obrigação do seu cargo, se incline aos pobres e lhes guarde inteiramente sua justiça, como se faz aqui.