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Sempre de joelhos, Fernão faz-lhe a reverência do kotao, batendo com a testa três vezes no chão, antes de alinhavar um intróito, adubado com algumas lágrimas e as melhores palavras que o tempo, a repetição ou a necessidade de salvar a vida lhe ensinaram. É mister que a mentira soe a verdade, pois se os chins tiverem sequer rascunho da sua tentativa de pilhar os túmulos dos seus reis e de outras malfeitorias de corso, serão irremediavelmente condenados aos maiores tormentos e pena de morte.

– Somos mercadores do reino de Sião, naturais de uma terra que se chama Malaca, não somos ladrões – continua Borralho, de corpo curvado e olhos baixos. – Quando navegávamos para o porto de Liampó, faz mais de um ano, perdemo-nos com o tufão e naufragámos na enseada de Sambor e Fanjus, nos ilhéus de Tautaa, onde só dezoito demos à costa, apenas com os farrapos que trazíamos nos corpos. Andámos peregrinando, pedindo esmola de porta em porta para sustentar as nossas vidas, até chegarmos à cidade de Nanquim, a fim de nos engajarmos como remeiros nas lanteias104 e seguirmos para Cantão, onde os nossos naturais, com licença do aytao, fazem sua veniaga debaixo do seguro e verdade do Filho do Céu, o Leão Coroado no Trono do Mundo. Desses dezoito náufragos, pereceram nove com as desgraças e trabalhos que nos sucederam pelo caminho, em particular, nos troncos de Taypor e Nanquim.

Embora os réus não se apresentem diante deste alto dignitário do reino com a compostura devida, cometendo faltas de cortesia imperdoáveis a qualquer chim, para mais acusando a justiça dos seus oficiais, o conchaly sofre-lhes com paciência os erros, desculpando-os por serem estrangeiros pobres e sem polícia105.

– Tendo chegado a Taypor, dois meses após o nosso naufrágio – retoma Fernão, animado pelo zelo com que o oficial os ouve –, um chumbim viu-nos a pedir esmola e, desconfiando de nós sem razão, fez-nos uma devassa. Com falsos testemunhos nos condenou por ladrões, pondo-nos vinte e seis dias no tronco, com grilhões nos pés, cormas nas mãos e colares nos pescoços, onde jazemos atormentados por muitos açoutes, piolhos e fome, de que morreu a metade dos nossos companheiros, tão inocentes como nós. Não satisfeito, quis castigar-nos com a pena de morte e remeteu-nos à Relação do chaem de Nanquim onde, por seu dito, nos condenaram a novo açoutamento com corte dos polegares, sem nunca nos ouvirem. Por sermos pobres e não termos nesta terra ninguém que por nós fale, com estas lágrimas rogamos aos Vinte e Quatro da Austera Vida que, por zelo do Céu, hajam dó do nosso desamparo e, vendo quanta sem razão nos foi feita, nos façam justiça.

Vendo as lágrimas a correrem pelos rostos dos estrangeiros, o conchaly guarda alguns momentos de silêncio, concluindo em tom menos severo:

– Não há mister dizer mais. O Céu o sabe! Basta ser pobre para que isto corra por outra via diferente da que correu até agora. Dou-vos espaço de cinco dias, conforme à lei do Terceiro Livro, para que os vossos procuradores possam requerer justiça. Aconselho-vos a fazerem uma petição aos tanigores da Casa de Gofilem-Guaxi, para que eles tomem cargo da vossa defesa.

Agradecem-lhe ao modo chim, cerrando o punho da mão esquerda, cobrindo-a com a palma da direita, levando-as juntas ao peito muitas vezes, inclinando a cabeça e o corpo, repetindo a cada momento a palavra chim, para indicar que o têm metido na alma ou no coração. Borralho mostra-lhe a carta selada com três sinetes de lacre verde.

– Trazemos esta carta dos tanigores da Casa de Quiay Hinarel para os de cá, pois em Nanquim houveram piedade de nós e da nossa desgraça, dando-nos de vestir e de comer porque tudo perdemos no naufrágio e até as roupas que trazíamos nos corpos nos roubaram na prisão.

Para seu espanto, o mandarim dá-lhes um tael de esmola.

– Guardai muito bem o que é vosso dos moradores desta prisão, porque têm mais por ofício roubarem o alheio do que repartirem do seu com os necessitados. O Céu o sabe.

O Céu o sabe é a sentença correspondente ao português Deus o sabe, que os chins repetem a cada instante e com a qual o mandarim põe fim ao encontro. Sem outra palavra ou gesto, ergue-se do banco que os upos se apressam a recolher e sai da enfermaria para o edifício do tronco onde vai fazer audiência.

Ainda mal sarados das feridas, algemados, com grilhões nos pés e canga ao pescoço, os portugueses são levados da enfermaria para um dos oito cárceres do pátio onde, a partir de agora, passarão as noites. É uma casa muito grande e comprida, com dois estrados móveis de madeira que vão da porta até ao fundo, cada um com uma grossa corrente e pesadas cadeias, formando uma coxia larga no meio.

Os tronqueiros deitam-nos de costas no estrado, põem a cada um sua cadeia, por sobre o peito, prendendo-a numa argola entre dois condenados, cujos pés são acorrentados aos troncos que correm ao longo da quadra; por último, lançam-lhes por cima uma grade de madeira muito forte, como capoeira, pelo que de noite não se podem mover e, quanto a dormir, só quando a exaustão ou o hábito os moldam a tão desumana condição.

Decorridos sete dias, quando já desesperavam de ajuda, quatro tanigores vêm visitá-los. A entrada dos Irmãos da Misericórdia faz com que todos os condenados se lancem de joelhos, dizendo em voz entoada:

– Bendito seja este dia em que os deuses nos visitam pelas mãos de seus servos. O Céu o sabe.

A que eles respondem, com semblante grave e modesto:

– E a sua mão poderosa e divina, que fabricou a formosura da noite, vos tenha em si como têm aqueles que sempre choram os males do povo. O Céu o sabe.

Param diante dos folangji, parecendo desconcertados pelo seu aspecto.

– Que homens sois? – perguntam com modos corteses. – Por que causa fazeis mais sentimento em estardes presos do que os outros?

Recontam a história e pedem-lhes socorro com muitas lágrimas que, pelo traquejo adquirido com as inúmeras repetições, lhes são cada vez mais fáceis de verter de modo convincente, como actores consumados. Borralho entrega-lhes a carta dos seus confrades de Quiay Hinarel, que o mais velho dos quatro toma com muitas cerimónias de cortesia e mete no seio, dizendo à laia de despedida:

– Louvado seja o que tudo criou, pois se quer servir de pecadores da terra como nós, para as suas boas obras, pagando-nos em bênçãos com tanta multiplicação como as gotas que as nuvens do Céu têm lançado em toda a terra. Logo que o vosso caso se apresente na mesa do remédio dos pobres, vos daremos resposta.

Dão-lhes cobertores e algum dinheiro, prosseguindo com a sua visita. Alguns dias mais tarde, dois deles voltam a visitá-los para os interrogarem minuciosamente; mostram levar muito a peito a sua defesa, mandando chamar o escrivão que tem a apelação dos seus confrades para se informarem dela e pedir-lhe conselho sobre o modo como devem requerer justiça para os estrangeiros. Todavia, muita areia escorrerá nas ampulhetas da Casa da Judicatura do Crime até os réus chegarem ao fim do seu processo.

Ao contrário das prisões portuguesas, nas dos chins há muito para ver e fazer, se os presos tiverem meios de fortuna ou saibam um mester de alguma utilidade. Em Portugal são meros edifícios com um conjunto de calabouços ou masmorras pequenas, onde os prisioneiros jazem até ao final das suas penas; na China são maiores do que vilas ou até cidades, como esta onde se acham os portugueses, rodeada por uma cerca de pedra com três portas fortemente vigiadas, que uma grande vala interior separa de uma segunda cerca de madeira muito forte, onde ficam as casas dos lauteaas que governam o tronco, com formosos aposentos, pátios lajeados e jardins com tanques de peixes, assim como hortas e pomares.

Várias portas dão acesso à cerca de madeira onde ficam os edifícios da prisão, sendo o dos condenados a penas menores tão vasto que tem ruas e praças, onde os presos alugam camas a quem possa pagar e vendem comida e tudo o que os parentes lhes trazem de fora para ganharem ali a sua vida.