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Fugir desta prisão é tarefa impossível por estar fortemente guardada, tanto de fora como de dentro, pelos parthianguons ou pu-t’ing que fazem várias vezes a contagem dos presos, durante a noite. Todas as manhãs, embaçados e tolhidos de torpor, os portugueses dão graças a Deus quando os guardas vêm soltá-los e os deixam sair para o pátio a estirar as pernas.

No entanto, para os folangji, a ansiedade da espera e a incerteza da sua salvação ou perdição tornam-se dia a dia mais insuportáveis, não só pelas terríveis condições em que vivem, mas sobretudo pelo espectáculo aterrador das penas infligidas aos prisioneiros chins, a que foram forçados a assistir, um mês depois da sua entrada no tronco, e por pouco não os fizera perder o siso.

103 Um dos títulos do imperador.

104 Lanteia, do chinês lingting (ling t’ing), pequena embarcação, movida a remos e com a proa decorada com a figura de um dragão, usada no transporte de passageiros e também de mercadorias.

105 Civilização.

V

Todas as flores do futuro estão nas sementes de hoje

(chinês)

Traslado dos Artigos do Promotor da Justiça contra os folangji:

E provarei, por testemunhas de vista, assim naturais como estrangeiras, que estes nove réus são públicos ladrões, roubadores das fazendas alheias e não mercadores, como dizem, porque se tivessem vindo de bom título à costa de Ta Ming106 e com tenção de pagarem os direitos ao rei nas suas alfândegas, se teriam metido nos portos onde elas estão. Mas porque andavam como corsários, de ilha em ilha, permitira o Céu que se perdessem e fossem presos pelos ministros da nossa justiça para colherem o fruto de suas más obras, que era a pena de morte que por elas mereciam, conforme à lei do Segundo Livro em que isto especificadamente se declara.

E ainda que o mesmo direito os relevasse da pena de morte, todavia por serem estrangeiros, e gente sem lei, em que não havia claro conhecimento de Deus, para por seu amor ou temor deixarem de se ocupar em muitos perversos exercícios, isso só bastava para que ao menos fossem condenados a lhes cortarem as mãos e os narizes e os degradarem para sempre para os lugares de Ponxileytay, onde é costume lançarem-se os de seu ofício, pelo que requeiro que me recebam estes artigos a que espero dar prova no termo que me seja assinado.

(Peregrinação, capítulo CI)

O conchaly que primeiro os ouvira na enfermaria, nesse mesmo dia condenara a penas de cem açoites com canas grossas e a outras cruéis mortes vinte e sete ladrões que tinham sido apanhados com a boca na botija, ou seja, com o furto nas mãos, pelo que não houvera apelação nem Irmãos da Misericórdia que lhes valessem, sendo o castigo marcado para dali a um mês.

O terror começara na véspera da execução, como se todos os diabos do inferno andassem à solta pela casa do tronco nessa noite, com o rebuliço que fizeram os condenados ao ouvirem o som dos sinos anunciar o castigo. Pertenciam ao lote de presos que tinham vindo no junco do chifuu e Fernão sentira um grande alívio por não ver entre eles o velho poeta Lin Dan, um letrado caído em desgraça que lhe ensinara muitas coisas sobre a China durante a viagem e continuava a ajudá-lo no cárcere.

Os que puderam deitar mão a um pedaço de corda para se enforcarem andavam às punhadas com outros que lhos queriam tirar para morrerem primeiro e assim poderem escapar ao suplício. Sete deles o fizeram à vez e com muito trabalho por ser a corda curta, apenas o bastante para enfiarem o pescoço e se atarem a um pau que meteram na parede. Como o pau estava baixo, estiravam-se todos até sufocarem, no que demoravam assaz de tempo, se os que estavam na fila para morrer não os ajudassem fazendo peso no corpo.

De manhã, os guardas vieram recolher os corpos dos suicidas e conduzir os vinte sentenciados restantes, cujo castigo seria público para servir de exemplo aos outros presos. A sentença foi executada com tamanha desumanidade que, de tão assombrados e cortados de medo, os nove portugueses julgaram ensandecer.

– É este o fim que nos espera? – bradava Fernão, pálido como um morto, por entre arrancos de vómito azedo. – O promotor de acusação pede para todos nós a pena de mutilação e morte e vós vistes como a executaram no capitão dos ladrões.

– Cortaram-lhe mais de mil fatias e ainda estava vivo quando o cravaram na cruz! – gemeu Gaspar de Meireles, de olhos esbugalhados, a tremer de tal modo que não se tinha de pé. – Abriram-no como a um porco para lhe tirarem a fressura que deram a comer aos cães.

Álvaro de Melo reprimiu o mareio, envergonhado da sua fraqueza, procurando dar firmeza à voz:

– Não tiveram melhor sorte os seis desgraçados a quem os algozes deceparam as naturas para lhas meterem na boca antes de lhes cortarem a cabeça e lhes fazerem o corpo em sete pedaços!

Os tronqueiros atiraram os mortos para as latrinas, onde estiveram três dias a servirem de repasto aos ratos e a muitos presos que nada tinham de seu e andavam mortos de fome. Ao fim desse tempo, os parthianguons, vigiados por um oficial da justiça com os seus escrivães, retiraram da imunda cloaca os corpos, que ainda estavam inteiros, levando-os arrastados por uma corda até uma porta do tronco que abria para o exterior. Deram a cada um três pancadas na cabeça com um pau ferrado, certificando-se assim de que nenhum deles se fingia de morto para escapar do cárcere. Os escrivães fizeram o registo da saída num livro de assentos e os cadáveres foram lançados num monturo no campo.

– Só sairemos daqui como aqueles – murmurara Gaspar, rompendo em soluços, quando vira levar os corpos destroçados.

– Ficámos debaixo da maldição do santo homem de Calempluy – teimara Fernão, com a voz embargada. – Ele jurou que a terra, o ar, os ventos, as águas, as gentes, os gados, os peixes, as aves, as plantas, tudo o mais que hoje é criado nos haveria de empecer e morder sem piedade.

– Cose-me essa boca, Fernão Mendes, não alembres maus agouros! – bradara Zeimoto, que procurava consolar o músico: – Quero crer que estes tanigores nos hão-de valer tanto como os de Nanquim.

– Se tratam com tal crueza os seus salteadores de estradas – duvidara Melo –, nem quero pensar no que nos farão se souberem da Noiva Roubada, para já não falar no que fizemos, depois do nosso naufrágio na ilha dos Ladrões107, quando fugimos com a lanteia, abandonando os trinta chins na ilha deserta.

– Eram eles ou nós! – protestara Joaquim. – Jazíamos há já quinze dias na maldita ilha, meio mortos de fome, se não fora o cervo que o tigre matou. Pelo menos salvámos o menino que estava no barco.

– O menino – contrapusera Cristóvão –, furtámo-lo à sua gente e pesam-me na consciência as suas lágrimas e rogos para o deixarmos ir a nado para a praia, onde víamos o pai a chorar de aflição. Parece-me ouvir ainda a acusação que nos fez de darmos graças a Deus com as mãos sujas dos nossos crimes! Pelo passado se julga o futuro.

Fernão sentira na boca um gosto amargo de mareio, ao ouvir Melo mencionar a formosíssima Chu Huyen, que eles haviam raptado na baía de Tilaumera, na Cochinchina108. Não logrou suster as lágrimas que lhe correram pelo rosto tão grossas como as de Meireles.

– Em qualquer terra de cristãos, se fossem tomados homens como nós, desconhecidos, mal sabendo a língua e de quem gente grada como o chumbim de Taypor fizesse tão graves acusações, seriam logo justiçados sem sequer serem ouvidos.

Jorge rira-se escarninho:

– É certo, Valentim, que os mandarins grandes da justiça não aceitam peitas. a menos que elas compensem o risco! Quanto aos mais pequenos, sejam oficiais, escrivães, tronqueiros, guardas, vigias ou os algozes que aplicam os castigos, não há um só que não espere que lhe untem as mãos. Se não os tivéssemos peitado com alguns taéis de prata, já teríamos decerto morrido dos açoutes em Taypor, Nanquim ou ainda neste tronco.