Ficaram por momentos em silêncio, recordando os muitos mortos que tinham deixado para trás. As moedas de prata, amaciando os carrascos, haviam contribuído para o milagre de estarem vivos, pois os açoites tinham sido ministrados com menos fereza e em menor quantidade do que a sentença requeria. Ali mesmo, na prisão de Gofanjauserca, o tael que o conchaly lhes dera servira para negociar com o tronqueiro a liberdade de andarem no pátio e na cerca sem canga nem ferros, até à hora de recolher aos bailéus para a primeira contagem da noite feita pelo lauteaa com os seus escrivães.
Os tanigores tinham conseguido a revogação da sentença do tribunal de Nanquim, pelos Doze Conchalys da Mesa do Crime, porém o mandarim arguidor requereu contra os réus, retomando a acusação de corsários e ladrões do mar, a qual foi novamente contestada pelos procuradores da Mesa do Remédio dos Pobres.
Nestas idas e vindas, entre alegações, artigos de contraditório e novas alegações, correram seis meses, uma eternidade para quem vivia com o credo na boca temendo ver surgir algum sobrevivente das abordagens e saques de António de Faria, para os denunciar. Até Jorge Mendes perdeu o seu humor faceto, mantendo-se em melancólico silêncio como os demais companheiros.
A presença dos estranhos folangji, graças decerto às demandas dos tanigores feitas em seu favor, chegara aos ouvidos da gente nobre e rica de Pequim e alguns grandes senhores que nunca tinham visto portugueses, movidos pela curiosidade, usaram de influências, presentes e dinheiro para amiúde os tirarem do tronco, levando-os de visita a suas casas, para os verem e saberem das suas terras e costumes.
Para os cativos, estas saídas eram tomadas como um milagre da Divina Providência que, por serem cristãos devotos, os protegia sempre em terras de gentios pagãos e idólatras, apesar dos seus crimes. Por falarem bem a língua, Fernão, Borralho, Zeimoto, assim como Gaspar que sabia tanger e cantar, eram invariavelmente escolhidos pelos parthianguons e pelos tanigores, tornando-se tal mercê fojo de invejas e ódios da parte dos preteridos. Embora partilhassem com os restantes companheiros a comida e bebida que lhes davam os seus benfeitores, não logravam apaziguá-los nem evitar os seus remoques raivosos e a inimizade tão nociva à sua causa nas presentes circunstâncias. Contudo, se os insultos e a malquerença eram o preço que tinham de pagar pelas horas de prazer que passavam fora da prisão em requintada companhia, os quatro eleitos estavam dispostos a sofrê-los com resignação e boa cara.
Os nobres chins recebiam-nos com as suas mulheres, parentes e outra gente lustrosa, com grandes honras, como se também eles fossem grandes, sentando-os à sua mesa, a comer e a beber, despedindo-os por fim com muitos presentes. A sua curiosidade parecia insaciável e os portugueses esforçavam-se por satisfazer-lha, ajudando-se uns aos outros na busca das palavras para o melhor relato das suas desventuras, cada vez mais fabulosas, pelo contributo da poderosa imaginação de Fernão Mendes, cujo engenho se ia aguçando com a experiência.
Sentiam na pele e na alma a doce presença das donas e donzelas a espreitarem por trás do pano da porta que separava os aposentos interiores das mulheres dos exteriores com saída para a rua, onde viviam os homens. Quando se mostravam, vinham quase sempre de rosto tapado por um véu, a menos que tivessem permissão do marido ou pai para se descobrirem, liberdade concedida talvez por eles serem estrangeiros e uma raridade nunca antes vista. Faziam-lhes mesuras ao modo das mulheres portuguesas ou dobravam-se em três zumbaias109 juntas e apressuradas, sempre com gentis sorrisos, olhos baixos e uma frase de boas-vindas; Gaspar cantava-lhes versos com uma voz tão enamorada e saudosa, que só tinha igual nos sons plangentes que arrancava a um instrumento semelhante a uma viola, com assaz desafinação, mas cujo som parecia encantar as suas anfitriãs.
As mais moças eram em geral muito alvas e formosas, com narizes bem feitos, os olhos alcoforados110 a sobressaírem nos rostos cobertos de alvaiade, com arrebique vermelho nos lábios e nas faces. Amargurado pela recordação constante da Noiva Roubada, Fernão revivia o momento em que pela primeira vez lhe contemplara o rosto de porcelana, onde brilhavam uns olhos amendoados, tão negros como os longos cabelos de azeviche. Então, para se consolar, refugiava-se na bebida e na comida, como o estômago lhe exigia com sonoros roncos de bicho esfaimado.
Bebiam e comiam tudo o que os seus anfitriões lhes punham na frente, mesmo as iguarias mais insólitas, pois, como diz a sábia voz do povo, asno que tem fome a manjedoura come, dando graças a Deus pela generosidade dos idólatras, prometendo-Lhe grandes esmolas, se Ele lhes concedesse a graça de volverem sãos e salvos a Malaca.
106 Tamen, na Peregrinação, ou Grande Ming, como os chineses denominavam a China.
107 A ilha dos Ladrões era o pequeno arquipélago Wanshan qundao que fica a poucas milhas da ilha de Lantao ou Dayu dao (sudeste de Macau) e servia de abrigo aos piratas que infestavam os mares da China. Também era chamada Laowan shan ou ilha do Velho Wan, um famoso corsário conhecido dos portugueses.
108 Tilaumera é um rio da Cochinchina. No século XVI, os portugueses davam o nome de Cochinchina às terras do litoral de Tonquim e Anam, portanto, o norte do actual Vietname.
109 Vénias chinesas.
110 Orlados de escuro, natural ou artificialmente.
VI
Nunca acendas um fogo que não possas apagar
(chinês)
Despacho do chaem contra o promotor da justiça:
Antes de sentenciar esta causa, condeno o promotor da justiça em vinte taéis de prata, para o remédio destes estrangeiros, visto não provar cousa alguma do que contra eles veio dizendo, e por esta primeira vez seja suspenso do seu ofício até o Tutão prover nisso, e seja avisado que daqui por diante não articule por tão má maneira, nem por palavras tão desconcertadas, so pena de pela segunda vez ser castigado conforme ao direito determinado pelos chaens que está aceitado na casa do Filho do Sol Leão Coroado no Trono do Mundo. E sendo satisfeito a isto em termo de três dias primeiros seguintes, me torne a esta mesa com as mais razões que ambas as partes por si quiserem apontar.
(Peregrinação, capítulo CI)
Face ao protesto dos tanigores, o chaem exigira ao conchaly acusador que apresentasse as suas testemunhas no prazo dos seis dias de ordenação, de contrário não lhe aceitaria os artigos da sua acusação por serem difamatórios, conforme protestava a defesa. Findo o prazo, defesa e acusação foram de novo chamadas à sua presença; exasperado por não ter descoberto qualquer testemunha, o promotor fez um arrazoado contra os nove réus tão infamante e com palavras tão descorteses que o chaem se afrontou do desconcerto, as mandou riscar dos autos, emitindo o despacho acima transcrito, admoestando-o e condenando-o a multa.
No dia seguinte, sendo manhã clara, os quatro tanigores depois de distribuírem comida, roupas e dinheiro pelos reclusos mandaram chamar os estrangeiros à enfermaria para lhes darem conta da sessão com o acusador e incentivá-los a terem fé numa sentença favorável. Recebem com modéstia os agradecimentos dos seus protegidos e dão-lhes colchas para se cobrirem de noite, por já fazer muito frio na província de Pequim.
– Pedi tudo o que precisais, porque nós.
Interrompe-os a chegada do escrivão do processo com uma cópia do despacho do chaem e os vinte taéis de prata da indemnização do lauteaa promotor, documento que requere a assinatura de todos. Os portugueses agradecem-lhe com muita cortesia, pedindo-lhe para tomar o que quiser daquele dinheiro, oferta que ele recusa com veemência.
– Não troco eu por tão pouco o merecimento que posso ter aos olhos de Deus por vosso respeito. O Céu o sabe! – diz, parecendo mais assustado do que agastado, temendo decerto ser acusado de receber peitas.
A visita do escrivão e a inesperada riqueza que ele lhes trouxera reanimaram-lhes a esperança de que não estaria longe a conclusão do processo, no entanto, passaram mais vinte e um dias sem outra novidade senão o escândalo dos tanigores com a insistência dos réus para que intercedessem junto do chaem para ele lhes dar despacho.