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Quando chega a almejada manhã do julgamento, dois chumbins da Justiça – os meirinhos da execução do crime –, acompanhados por vinte upos armados de alabardas e chuços, vêm buscá-los à prisão para os levarem ao tribunal. Lançam-lhes algemas, grilhões nos pés, canga ao pescoço e, amarrando-os todos juntos num feixe, com uma corrente de ferro muito comprida, conduzem-nos aos tropeções para o Caladigão ou Casa de Audiências e Execução dos Condenados Estrangeiros.

Os réus tremem de pavor e em alguns passos do caminho caem de joelhos, abraçados uns aos outros, pedindo misericórdia em grande agonia. Estas demonstrações de emoção dos folangji, tidas por impróprias ou vergonhosas, causam espanto tanto nos upos como nos transeuntes com quem se cruzam e o rapazio, que corre atrás do cortejo, não os poupa às vaias, cuspidelas e pedradas.

Quando entram no pátio do Caladigão já ali se encontra muita gente do povo com requerimentos, mirando de soslaio os Vinte e Quatro Ministros do Braço da Ira, os algozes que aplicam os castigos e se perfilam diante de um pailó de cantaria, encimado por dois leões de prata e fechado por pesados portões de madeira muito bem lavrada.

Um sino tange, as portas abrem-se e a multidão entra de rompante para uma sala semelhante a uma nave de igreja, coberta de pinturas representando os vários castigos e penas de morte infligidas pela Justiça aos condenados, segundo os crimes indicados nos letreiros. Os dois chumbins guiam os estrangeiros até outra câmara, que atravessa a anterior como um cruzeiro de catedral, toda revestida a ouro.

Ocupa o centro do salão uma tribuna de sete degraus, com um dossel de damasco, cercada por três ordens de grades. Nos três primeiros degraus perfilam-se oito porteiros empunhando maças de prata e sessenta alabardeiros mogores, sentados sobre os joelhos, formam duas fileiras, imóveis como estátuas, vigiados por dois gigantes, de pé, com espadas a tiracolo e grandes alabardas nas mãos.

Sentado numa cadeira de prata, sob o dossel, o chaem segura na mão uma vara de marfim de três palmos, à maneira de ceptro. Vestido até aos pés de cetim roxo, tem ao pescoço uma espécie de escapulário com uma chapa de ouro no meio, onde está gravada uma balança direita e a legenda Peso, Conta e Medida e outros caracteres que Fernão desconhece. Cobre-lhe a cabeça um barrete redondo de varetas esmaltadas de verde e roxo, terminando no cocuruto pelo símbolo do imperador, um leão de ouro sentado sobre uma bola.

Ladeiam a cadeira do juiz dois meninos formosíssimos, de cabelos compridos como donzelas, trançados com uma fita de ouro e grossas pérolas. O da direita, trajado de cetim branco e com um colar de pérolas de três voltas ao pescoço, tem o cotovelo encostado à cadeira do chaem e segura na mão uma insígnia. O da esquerda, vestido de cetim carmesim, tem a manga direita arregaçada para mostrar o braço tinto de vermelhão, como a espada nua que segura na mão e a coroa em forma de mitra de bispo que traz na cabeça, com lâminas vermelhas como lancetas a sangrar. São tão belos que os portugueses não logram apartar os olhos deles.

– Até parece que o demo nos quer atentar a alma com o pecado nefando.

– Há tanto tempo sem mulher. cagava-me para o pecado, se lhes pudesse saltar em cima!

Fernão ouve nas suas costas as vozes abafadas que ousam pôr em palavras o desejo pecaminoso que os invade a todos e que ele procura sufocar, esforçando-se por escutar o tanigor que lhes explica também em surdina as coisas que vêem e os procedimentos que devem ter durante as cerimónias para não causarem escândalo com a sua rudeza:

– O menino da direita simboliza a Misericórdia e o da esquerda a Justiça, porque o chaem julga no lugar da pessoa do imperador, o qual representa Deus na terra, por isso tem de ser justo e misericordioso, para não ser apodado de tirano sem lei, usurpador da insígnia que traz na mão.

Diante do juiz, sobre uma mesa de prata, está um pequeno escritório redondo contendo um tinteiro e pó para secar a tinta. Ao redor da mesa, sentam-se três meninos, com ricos trajos e cadeias de ouro ao pescoço: os dos lados recebem as petições, o do meio molha a pena na tinta e dá-a ao chaem para ele as assinar. Em baixo, a cada extremo da tribuna, há uma mesa coberta de damasco roxo, com doze lugares, onde se sentam os mandarins do Crime e os do Cível.

– As suas vestes brancas com mangas largas mostram a pureza e largueza da justiça – elucida-os o tanigor.

O conchaly do Cível dá quatro pancadas rápidas num sino, para silenciar a assistência, faz a sua cortesia ao chaem e brada em alta voz:

– Calar e ouvir com prontidão humilde, sob pena do castigo que os chaens determinam dar aos desinquietadores do silêncio da justiça. O Céu o sabe.

Senta-se e o silêncio faz-se mais pesado quando o conchaly do Crime sobe à tribuna e lê vários rolos de processos que os oficiais lhe entregam, gastando na leitura muitas voltas de ampulheta até chegar à publicação da sentença dos estrangeiros.

Obedecendo às instruções do tanigor e dos upos, os nove réus ajoelham-se, sentando-se sobre os calcanhares, com as cabeças inclinadas a tocarem o chão e ambas as mãos erguidas ao céu como quem reza. Oram de verdade, sentindo um suor de gelo a arrepiar-lhes as carnes e a morte na alma, porque a do corpo é já certa e não tardará a ser-lhes anunciada.

No pátio das execuções esperam-nos os Vinte e Quatro Ministros do Braço da Ira para executarem a sentença e eles morrerão longe da pátria, sem ninguém para lhes recordar o nome, reclamar os seus corpos, chorá-los ou dar-lhes sepultura cristã. Deus abandonou-os, anojado pela sua impiedade de ladrões do mar e eles vão acabar as suas vidas na terra dos chins como párias, sem nome nem lei.

Para Fernão, de todas as iniquidades que haviam cometido, o rapto da doce Huyen, dois anos antes, fora a mais cruel, merecedora do maior castigo. Por essa torpeza pede agora perdão a Deus, de pálpebras cerradas e alma iluminada pela imagem da donzela de pele de seda e olhos amendoados que o enche de saudoso desejo, a ponto de o fazer esquecer onde está para volver à baía de Tilaumera, na terra dos cauchins, ao instante em que no junco de António Faria, ainda antes de a ver, se enamorara da formosa moça ao ler as palavras ardentes de paixão que ela escrevera numa carta ao noivo.

VII

Melhor é acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão

(chinês)

Carta da Noiva Roubada:

Se a fraca e mulheril natureza me dera licença para daqui onde fico ir ver a tua face, sem com isso pôr nódoa no meu honesto viver, crê que assi voaria meu corpo, a ir beijar esses teus vagarosos pés, como o esfaimado açor no primeiro ímpeto da sua soltura; mas já, senhor meu, que eu de casa de meu pai até aqui te vim buscar, vem tu daí donde estás a esta embarcação onde eu já não estou, porque só em te ver me posso eu ver, mas com me não veres na escuridão desta noite, não sei se na brancura da manhã me poderás enxergar entre os vivos; meu tio Licorpinau te dirá o que meu coração em si cala, assi porque já não tenho boca para falar, como porque minha alma me não sofre estar tão órfã de tua vista quanto a tua estéril condição o consente, pelo qual te peço que venhas, ou me dês licença que vá, e não me negues este amor que te mereço pelo que sempre te tive, porque Deus por sua justiça, em castigo de tal ingratidão, te não tire o muito que herdaste de teus antigos parentes neste princípio de minha mocidade, em que agora por matrimónio me hás de senhorear até à morte.

A desolada Su King que desespera de te beijar os pés.

(Peregrinação, capítulo XLVII)

O triunfo da armada de António de Faria sobre dois juncos corsários, no rio de Taunaquir111, rendera-lhes quarenta mil taéis de fazenda, mas a batalha fora renhida e a vitória custara-lhes quinze mortos além de muita gente ferida. O próprio capitão-mor escapara por um triz de ser atravessado por uma lança de arremesso, porque Fernão vira o golpe traiçoeiro e desviara-o a tempo, lançando-se sobre ele com risco da própria vida; o capitão prometera-lhe alvíssaras, erguera-se de um salto e prosseguira o combate. Também Cristóvão Borralho só não se perdera com o seu navio porque Faria, após ter desbaratado a chusma do junco que lhe abalroara a capitânia, acudira com os seus homens a socorrê-lo, varejando os inimigos e lançando-os ao mar.