No lado contrário, as perdas foram mais pesadas, com oitenta mortos e outros tantos cativos que recolheram do mar, por necessitarem de equipagens para os juncos. Puseram-nos a tratos, querendo saber se o capitão corsário era vivo ou morto, mas os homens, valentes e emperrados, preferiam morrer a falar, com grande agastamento de Faria que, embora lhes admirasse a bravura, desesperava do resultado.
– Ah, senhor! Ah, senhor! – chamara Borralho, que fora inspeccionar o segundo junco. – Acuda vossa mercê cá, porque temos mais costura do que cuidámos.
Abrira o alçapão da proa e descobrira gente cristã presa com cadeias, colares e algemas que Faria logo mandou soltar e trazer para o convés. Eram cinco meninos, oito moços, duas moças e dois portugueses, quase nus e tão maltratados que um dos portugueses teve de ser levado em braços, desacordado. O capitão proveu-os do necessário antes de lhes fazer perguntas sobre quem eram e como se chamava o ladrão que os cativara.
– O cossairo tem dois nomes, um de cristão e um de gentio – contou-lhes o outro português. – É necodá Xicaulem, um chim que se fez cristão em Malaca, onde foi baptizado com o nome de Francisco de Sá, em honra de seu padrinho Garcia de Sá, capitão da fortaleza, que o casou com uma órfã mestiça, filha de um homem honrado. Porém, o filho da puta não tardou a renegar a nossa fé e a adorar de novo os seus ídolos e deuses, matando a própria mulher por ela recusar fazer-se gentia. Meteu-se a cossairo e anda a dar caça aos barcos dos cristãos, matando todos os portugueses, como fez aos pais destas crianças. Poupou-nos aos dois porque eu sou calafate e o Pedro carpinteiro e este cabrão precisa dos nossos serviços, havendo já quatro anos que nos traz em ferros, fartando-nos de fome e açoutes. Este rio de Taunaquir serve-lhe de refúgio, porque o governador da província tem com ele praçaria e protege-o em troca da terça parte das presas, além de se livrar dos portugueses que não costumam fazer veniaga nestes portos. Se vos acometeu foi por cuidar que éreis mercadores chins e vos achar de bom lanço.
António de Faria ergueu-se de rompante.
– Vem ver se ele está entre os mortos.
Xicaulem não se achava entre os corpos que juncavam os conveses dos dois juncos e o capitão mandou equipar as manchuas, que eram uns barcos de carga de um só mastro com vela quadrada muito usados na costa do Malabar, e foi com o calafate procurá-lo entre os feridos que se debatiam no mar.
– Ali está ele, senhor capitão!
Boiava, quase inconsciente, com uma grande cutilada na cabeça e uma estocada no peito. Foi içado para bordo e arrastado até à proa onde lhe cortaram a cabeça e o fizeram em pedaços.
Com os corsários inimigos agrilhoados aos remos e curados os feridos, Faria mandara recolher as peças de artilharia inimigas – tomadas por Xicaulem nos três navios em que matara cerca de cinquenta portugueses – e distribuíra-as pelos três juncos e a lorcha112; por fim, com muita pena sua e de toda a tripulação, tivera de queimar um dos juncos, por não haver equipagem para ambos e ordenara aos oficiais que, de manhã bem cedo, estivessem a postos com as suas gentes para irem demandar a entrada do rio e a cidade.
Nessa noite, Valentim fizera por precaução uma surtida de batel e apresara uns pescadores, a quem dera presentes para os sossegar, em troca de informações da terra; os homens, gratos pelo bom tratamento, avisaram-no do perigo que a armada corria. Deviam evitar a cidade a todo o custo, porque a população já sabia da morte do necodá Xicaulem e estava em pé de guerra, por conseguinte, mesmo que o capitão lhes desse a fazenda de graça eles não lha receberiam. Tinham-lhe até preparado à entrada do porto duas jangadas carregadas de lenha, barris de alcatrão e fardos de breu, para serem lançadas a arder contra a sua armada, além de duzentos paraus de remo com frecheiros e gente de guerra, dispostos a não deixarem um só deles com vida.
Faria convocou o conselho de oficiais que determinou ser mais seguro abandonar aquelas águas e rumar a leste, para o porto de Mutipinão, um lugar de passagem e reunião das cáfilas que vinham das terras dos Lauhos, Pafuaas e Gueos com muita prata para resgate.
Sempre bordejando a costa com ventos ponteiros, tinham chegado à ponta do morro de Tilaumera, onde a corrente contrária e fortes temporais pela proa os forçaram a lançar ferro a pouco mais de um quarto de légua de terra, retendo-os ali quase duas semanas, amofinados pela imobilidade e escassez de mantimentos.
Fernão achava o oceano Índico muito mais navegável e menos perigoso do que o Atlântico. Desde o mar Roxo até aos das Índias, de Banda ou da China, a costa era toda recortada em grandes penínsulas e golfos, transformando-se a sudeste e leste, com os inúmeros arquipélagos que banhava, em outros tantos mares mediterrâneos onde os navios podiam fazer escala, para reparo, abrigo ou descanso das tripulações. Com a condição de se navegar durante as monções, nas duas metades do ano, alternando a do sudoeste, que nos seis meses de Verão sopra das costas orientais da África por toda a Ásia Meridional, com a do noroeste ou de Inverno, na outra metade, a soprar ao invés da China para a África, determinando ambas o movimento das correntes.
A tarde do décimo terceiro dia esvaía-se mar dentro, em tonalidades de laranja e ouro quente, qual incêndio a lavrar no céu. Fernão já não reparava na beleza da paisagem que, de tão repetida, se tornara monótona, nem se achava sequer com vontade de jogar com os companheiros que, quando perdiam, não só armavam zaragata como eram lestos a puxar da espada ou do punhal. Encostado à amurada, prestava uma orelha distraída à canção melancólica dos corsários presos aos remos.
Vejo no alto a Via Láctea,
Mas aqui o caminho é mais áspero.
Os Bois Sagrados brilham parados;
Eles não nos tiram os fardos da vida.
A Peneira cintila ao sul,
Mas o bem e o mal vêm através da sua luz.
A Pá abre bem a boca
E nada espalha sobre vós.
Pela madrugada as Irmãs Tecelãs adormecem.
Ao escurecer erguem-se novamente;
Mas embora a Brilhante Lançadeira voe,
Elas não tecem nenhuma roupa para os homens113
Os tristes acusavam os astros de indiferença face ao seu cativeiro e Fernão sentiu uma leve mágoa, porém o fadário da escravidão fazia parte do bornal de qualquer marinheiro, soldado ou mercador que ousasse navegar naqueles mares. Nos seis anos que levava na Índia já ele passara mais de uma vez por essa mesma desventura.
Sons de festa rasgaram o preguiçoso silêncio e trouxeram vida às quatro embarcações, arrancando os homens do marasmo e fazendo calar a cantoria da chusma. Acercavam-se quatro lanteias de remo, todas engalanadas, a fazerem uma matinada ensurdecedora com atabaques, bacias e sinos.
– Quem são esses, capitão? – perguntou a António de Faria que acudiu à proa.
– Hão-de ser espias do aytao de Tanauquir que vêm em nossa busca! – E começou a berrar ordens em todas as direcções: – Arriai as amarras. Hasteai os estandartes chins. Desenrolai os toldos das gáveas para lhes dar mostras de muita alegria. Tu, assinala aos outros navios para fazerem como nós. Tende as armas prestes e preparai-vos para tudo o que vier.
As lanteias saudaram os juncos, à charachina, com grande vozearia e estrondo de bombardas, respondendo-lhes Faria na mesma moeda de salvas festivas. Os recém-chegados lançaram ferro perto de terra, a um quarto de légua de distância dos portugueses.