– Que querem os malparidos? Má trama lhes dê Deus!
– São espias, não há dúvida. A armada deles deve ter ficado para trás, mas não há-de tardar a cair-nos em cima.
– Boi na terra alheia, vacas o escornam.
Duas horas se passaram neste desconcerto, sem saberem o que fazer; era já noite cerrada quando uma das lanteias se acercou da capitânia.
– Escondei-vos – ordenou Faria aos portugueses. – Quero que eles vejam só seis ou sete matalotes chins, para não desconfiarem da cilada. Tende muito prestes as panelas de pólvora, porque com elas e às cutiladas havemos de os vencer.
O barco acostou e três homens de aspecto honrado subiram a bordo, confiantes e sorridentes.
– Onde está Pham Toan Thang? Dizei-lhe que é Licorpinau, o irmão do anchaci de Colem, quem o busca – bradou o mais velho, mal pisou o convés, em voz animada que o muito vinho já bebido fazia quase estridente. – Estará o filho do chifuu de Pandoree doente? Porque não vai buscar a noiva que veio como terna amante ao seu encontro? Onde pára esse ingrato, que lhe quero entregar esta carta da minha sobrinha, a formosa Chu Huyen? – Com gestos e esgares de exagerada indignação, erguia no ar um pequeno rolo de papel selado com lacre e fita de seda.
Ao brado de Jesus, Jesus, o santo e senha de Faria quando ordenava qualquer ataque, os matalotes saltaram sobre os desprevenidos visitantes, prenderam-nos e atiraram-nos escotilha abaixo para as pitacas114 das mercadorias. No frenesim da bulha, a carta rolou até aos pés de Fernão que a apanhou; tinha o selo quebrado e a fita soltara-se. Ninguém se apercebeu do incidente, porque o capitão ordenara a abordagem à lanteia dos mensageiros.
– Lê-me o que aqui está escrito – disse ao seu moço chim, entregando-lhe a folha, agastado por não saber ler a língua tão bem como a falava.
Estava longe de imaginar o efeito funesto que essa leitura teria na sua alma. O papel perfumado não era um relatório de espionação, nem ameaça de ataque ou ultimato de rendição, era apenas uma carta de amor, no entanto, as palavras nela contidas causaram-lhe mais estragos do que a pior das ameaças. A voz juvenil do moço materializava-as e Fernão sentia-se vibrar com as entoações de dor, dúvida e ansiedade, como se a carta fosse escrita por uma mulher impetuosa e não por uma donzela quase impúbere.
Palavras de paixão desenhadas a tinta por mão de mestra, entrelaçando sentimentos e desejos como fios de um bordado ou renda, cuja magia perdurava longamente depois da leitura acabada. Uma mulher enamorada da sua ideia ou representação do Amor, disposta a afrontar os perigos do mar, as suas tempestades e corsários, para voar com o ímpeto do esfaimado açor ao encontro do seu amado. Capaz de amar até à morte. Como poderia uma casta donzela sentir essa chama tão sensual, que punha na alma de um homem vivido esse fogo que o abrasava? Afortunado Pham a quem estava destinado tão raro tesouro!
Virgem sem mácula, certificada por uma ou mais parentes velhas do noivo, que lhe teriam feito uma inspecção rigorosa a todos os escaninhos do corpo, como era de uso naquelas terras, sobretudo entre gente de qualidade. Não bastaria a perfeição do rosto ou o comprimento, brilho e macieza da cabeleira que ele desejaria segurar entre os dedos como o manto de uma princesa: a noiva não deveria ter sinais ruins, manchas, feridas ou hemorróidas, nem defeitos na boca, no nariz, nos sovacos, nos pés ou nas partes pudendas, para ser declarada intocada, digna não só do leito do primo, como do próprio Filho do Céu.
Imaginou-se por instantes com mãos sábias a percorrer-lhe o corpo esbelto como um jade burilado, apreçando a pele alva e fina, tão macia ao toque que os dedos do amante ou do esposo haveriam de deslizar por ela como pela seda mais rara; a sopesar-lhe os seios redondos, que se aninhariam nas suas palmas em concha como duas rolas, de bicos róseos a endurecerem num arrepio de pejo; medindo-lhe os quadris delicados, a barriga arredondada e lisa, o umbigo cinzelado com a profundidade de um engaste onde pudesse caber uma pérola de meia polegada; afastando-lhe as coxas esguias para contemplar o triângulo do ventre, doce e cerrado, que escondia o tesouro da sua virgindade e, sentindo-a estremecer de pudor, afastaria os lábios da vagina, expondo a vulva de um vermelho brilhante, sem mácula.
Assim a fantasiava Fernão, sentindo um ódio profundo pelo desconhecido Pham, como nunca experimentara por outrem. O sangue subiu-lhe ao rosto, avermelhando-o como um assomo de raiva e gotas de suor humedeceram-lhe o corpo, num acesso de sezões. Com tal galardão à sua espera, o vilão cauchim em vez de voar ao encontro da noiva, deixava-a entregue à sua sorte, à mercê de corsários violadores e assassinos.
Foi arrancado ao devaneio, em sobressalto, pelo estrondo que fez estremecer o junco como se o tivesse atingido um tiro de bombarda, seguido de correrias, baques na água e gritaria. Os marinheiros tinham atracado a lanteia ao junco, prendendo-lhe um cabo à ponta do mastro e lançavam-lhe de cima algumas panelas de pólvora, atirando com os remadores ao mar, onde ficaram a esbracejar e a bradar que se afogavam se não os fossem recolher. Por ordem do capitão Faria sete matalotes e sete soldados, que tinham descido a tomar o barco, pescaram os náufragos, pondo-os a bom recado para mais tarde os usarem no serviço dos juncos.
– A diligência é mãe da boa ventura: temos de acometer as outras lanteias antes de se darem conta do que fizemos à sua mensageira. Vamos depressa e sem barulho.
Os remadores eram fortes e, se preguiçavam, o chicote lembrava-lhes logo que quem mandava no junco já não era o chim Xicaulem, mas o cristão Faria que os havia desbaratado, de modo que a chusma remava toda à uma, com bom ritmo, em perfeita sincronia. O navio cortava as águas com a ligeireza de uma toninha, seguida de perto, para a força de combate ficar toda junta, pelas restantes embarcações com as chusmas igualmente reforçadas.
O capitão escolheu como primeira presa a lanteia mais ricamente engalanada e fez-lhe uma surriada de artilharia leve, apenas para confundir os defensores, abalroando-a de seguida. Lançaram-se à abordagem, com os montantes, estoques e punhais desembainhados, apoderando-se da embarcação em menos de três credos, sem desferirem um só golpe ou dispararem um tiro, por não acharem soldado ou marinheiro que lhes oferecesse resistência.
Desconfiado, António de Faria mandara-o, com oito soldados, passar revista ao barco, a fim de prevenir emboscadas ou ataques traiçoeiros, se de facto os das lanteias fossem espias do capitão de Tanauquir, disfarçados de inocentes foliões. Fernão descobrira apenas um bando de gente assustada, escondida num compartimento sob a tolda: uma pequena chusma de remadores desarmados, alguns parentes e convidados da noiva, mais umas tantas mulheres que se alugam por dinheiro para tangerem nas festas e cerimónias. Divisara, atrás desta lacrimosa companhia, a silhueta da noiva toda coberta de véus, agachada no chão e meio escondida por dois moços pequenos, muito alvos e formosos, que a abraçavam chorando de terror.
Embora todo o seu ser o impelisse a acercar-se de Chu Huyen, para lhe erguer o véu e contemplar o seu rosto, a fim de satisfazer o desejo insano de a conhecer – um anseio que o impelira a lançar-se à abordagem ao lado de António de Faria, com uma temeridade muito pouco habitual ao seu ânimo de homem prudente que evitava as brigas, ainda que não fugisse delas quando havia mister combater –, retirara-se sem lhe dirigir palavra e fora dar conta do que vira ao capitão. Deixara dois soldados de guarda aos prisioneiros, com a recomendação de não lhes fazerem dano e postara os restantes homens de vigia, de modo a evitar a fuga da embarcação, se acaso os remadores ganhassem ânimo para intentar tal empresa.
– Não demos sequer uma arcabuzada ou lançada! – exclamou Faria, mal o viu assomar à coberta.
Fernão sentiu-lhe o despeito na voz e justificou:
– É o barco da noiva. Não tem gente de peleja, só traz remadores. Os mais são mulheres velhas e alguns homens honrados, segundo os trajos que vestem. Estavam todos escondidos debaixo da tolda, mortos de medo. Deixei-os com guarda.