– Capitão, capitão – bradou o mestre, enfrenesiado –, as outras duas lanteias já fogem, a remo e à vela!
Os olhos de Faria brilharam de excitação, como o caçador que persegue a presa e a vê prestes a escapar. Olhou para Fernão, como se o avaliasse pela primeira vez.
– Fique vossa mercê com os oito homens de guarda a esta lanteia, que eu vou caçar as outras, para que não nos denunciem ou não sairemos deste rio com vida. Assegurai-vos de que essa gente, sobretudo as mulheres, não sofra ofensas dos nossos e apartai as de maior valia para fazerem parte do saque.
Fernão deu graças pelo favor dos céus. Ficar fora de brigas e combates, para mais com o encargo de guardar a cativa, era uma bênção. Sem dúvida que o capitão o favorecia por lhe ter salvado a vida durante a luta com os corsários de Xicaulem.
– Ide com Deus, que eu saberei dar conta do recado.
Teve de gritar as últimas palavras porque Faria saltava já para o seu navio a gritar ordens aos homens para soltarem as amarras e os ganchos. Desenvencilhado da lanteia, o junco lançou-se na caçada aos dois barcos que, à força de remos, velejavam tão velozmente como se fossem perseguidos por monstros infernais.
Enquanto se dirigia ao reservado, a fim de se ocupar da noiva e das restantes mulheres e determinar quais iriam fazer parte do saque a dividir pelos assaltantes, conforme lhe fora ordenado, Fernão rogava a Deus pelo bom resultado da perseguição às lanteias fugitivas, pois, se o capitão as capturasse, o espólio seria abundante e rico, permitindo-lhe talvez aspirar à posse de Huyen como paga dos seus serviços.
Ao vê-la abraçada aos irmãos, na mesma desolada posição em que a deixara, só a muito custo pôde dominar o tropejo do seu coração e disfarçar o enleio perante os guardas e cativos, quando mandou a aia descobrir-lhe o rosto. A velha, resmungando que só o marido tinha o direito de a ver, erguera-lhe o véu de seda e ele contemplara a delicada face oval, de uma brancura de porcelana, o fino arco das sobrancelhas, o nariz pequeno, uma boca de lábios vermelhos, bela como um botão de rosa e, excedendo todos os seus encantos, os olhos amendoados, cujas pupilas negras o fitaram por momentos com esse fogo de que ele a imaginava capaz, embora a chama não fosse de amor mas de ódio.
– Por ti darei a vida e a alma! – murmurou, disposto a tudo para a possuir, mesmo que tivesse de morrer a lutar por ela.
Uma paixão insana que só um velho poeta parecera entender. Muito tempo depois destes sucessos, durante a viagem dos condenados pelo rio Batampina, o letrado Lin Dan pusera-se a divagar sobre a mulher do Oriente e o seu misterioso encanto. Acabrunhado de saudade e remorso, Fernão recordara Huyen como se a tivesse diante dos olhos.
– Há mulheres que provocam paixões à primeira vista, ou antes mesmo de as conhecermos, e que jamais serão esquecidas. Levam os homens a arriscarem tudo o que têm, glória, riqueza e a própria vida, a fim de possuí-las – concluíra o poeta, condoído das suas lágrimas. – Tal é o estranho poder de fascinação que têm certas mulheres: algo de fugitivo, que desafia qualquer explicação.
A Noiva Roubada possuíra esse poder. O encanto de Chu Huyen fora, na sua vida, luz de estrela, chama de fogueira, brilho de pedra preciosa, invisível e sem forma, no entanto sentido por todo o seu corpo como um veneno mortal. Esse sortilégio fizera da cativa cauchim a mulher mais tentadora e inquietante do mundo, cujo corpo possuíra e a quem amara perdidamente, sem todavia chegar sequer a tocar-lhe a alma.
– Alguém nesta casa, na cidade ou no reino tem embargos a esta sentença ou dúvida de se soltarem os nove presos?
Fernão estremeceu, arrancado às suas memórias pela voz do conchaly da Mesa dos Doze, apercebendo-se de que não ouvira a sentença e ficara sem saber se era vivo ou morto.
111 Talvez no actual Vietname, no delta do rio Vermelho.
112 Lorcha – barco asiático, semelhante à lanteia (lanteaa) que usava a técnica portuguesa para a construção do casco, mas com o velame chinês, criando uma embarcação rápida e de fácil manobra, um dos símbolos mais visíveis da presença portuguesa nos mares da China.
113 Poema escrito em 780 a. C. in Shijing, O Livro das Canções.
114 Compartimentos em que se dividia um junco para transporte de mercadorias.
VIII
Quando o sábio aponta para a Lua, o idiota olha para o dedo
(chinês)
Sentença de Pitau Dicalor, chaem no auditório da gente estrangeira:
Como a limpa justiça não aceita razões de partes contrárias sem haver prova clara no que dizem, pareceu-me não ser justo aceitar o libelo do Conchaly da acusação, pois não provava o que nele dizia. E tendo as duas partes, por meu despacho, arrazoado sobre o feito concluso, determinei a minha sentença:
Mando que estes nove estrangeiros sejam absoltos de tudo o que contra eles requereu o Conchaly acusador, sem lhes dar castigo nenhum de pena crime, somente os condeno em um ano de degredo para as obras da Changcheng, a Muralha Comprida, em Quansy, onde trabalharão por seu mantimento. E cumpridos os oito meses do ano, mando ao Chumbim e a todos os oficiais e ministros do seu governo a quem esta minha sentença for apresentada, que logo lhe[s] passem carta segura para que livremente se possam ir a sua terra ou onde for mais sua vontade.
(Peregrinação, capítulo CIII)
Os portugueses dão graças aos Céus pelo milagre de se verem fora do tronco, livres para andarem por Pequim à sua guisa, até ao dia em que terão de se apresentar na prisão do Xinanguibaleu, a do Encerramento dos Degredados, para irem trabalhar na Grande Muralha da China, no troço da fronteira com a Tartária. Por muito duro que seja o castigo tem sabor de prémio, porque os réus, descrentes da salvação, contavam ser degolados no pátio das execuções como carneiros num açougue.
Jamais esqueceriam o momento em que o chaem os absolvera dos crimes. De respiração suspensa, tinham escutado um dos conchalys da Mesa dos Doze perguntar em alta voz à assistência, por cinco vezes, se alguém punha embargos à sentença ou dúvida de se soltarem os presos. Ninguém respondera e os dois meninos que representavam a Justiça e a Misericórdia tocaram-se com as insígnias, dizendo em voz entoada:
– Sejam livres e soltos, conforme a sentença que justamente se deu.
Um upo dera três pancadas no sino e os dois chumbis libertaram-nos de todas as correntes e foram com eles à prisão fazer os assentos no livro da carceragem, ficando os folangji obrigados a partirem para o degredo dali a dois meses, sob pena, em caso de fuga ou desobediência, de quedarem cativos do rei para toda a vida.
Estão livres, contudo, agora que são senhores do seu destino, não sabem para onde ir ou o que fazer. Condoído do seu desamparo, o chifuu do tronco deu-lhes licença para lá dormirem nessa noite, um favor que eles agradecem de joelhos. A prisão é um lugar familiar onde, libertos das peias, poderão aconselhar-se e pensar no futuro. Precisam de se manter unidos e agir como um só homem ou não conseguirão sobreviver naquela terra tão fora dos seus costumes.
De manhã, quando os quatro tanigores vêm visitar os enfermos, os portugueses esperam-nos à porta da enfermaria. Os Irmãos da Misericórdia felicitam-nos pelo bom sucesso do julgamento.
– Que ides fazer com as vossas vidas, agora que sois livres? – pergunta o mais velho. – Lembrai-vos do que haveis penado aqui e tratai de não cometer os mesmos erros; se vos prenderem de novo, já nada nem ninguém vos poderá valer. O Céu o sabe.
– Somos uns pobres mercadores de Malaca, insignes irmãos, não somos ladrões nem salteadores de estradas! – apressa-se a dizer Fernão, deixando que as lágrimas lhe assomem aos olhos. – Só temos a roupa que trazemos vestida e nos foi dada por vós. Assi, desprovidos de tudo numa terra estranha, de que muitos de nós desconhecem até a língua, que poderemos fazer senão viver da caridade das gentes? Aconselhai-nos, bondosos irmãos: se andarmos a pedir esmola pela cidade, poderemos ser novamente presos e condenados por vagabundos ou ladrões?