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IX

Quem não sobe às altas montanhas não conhece a planície

(chinês)

Informação que um homem honrado, que na China esteve cativo, deu ao P. Mestre Belchior, no Colégio de Malaca:

A cidade principal em que está elRei, que é sobre todas a mais populosa e nobre, chama-se Pequim. Dizem os naturais da terra que se põem para se atravessar em direito sete dias de caminho, e treze em derredor: está cercada com três cercas e um rio mui caudaloso; na cerca mais de dentro está elRei.

Contam os homens grandes maravilhas das riquezas e obras das casas Reais, e todos os paços onde elRei está são rodeados com um braço deste rio, que cerca a cidade por fora. Têm as casas, antes que entrem dentro, sete ou oito portas de fortaleza estranha, as quais lhe guardam gigantes mui grandes .

ElRei afirmam que nunca sai daquela cidade, porque nela tem todos os modos de suas recreações e deleites terrenos e todo o que come se cria dos muros para dentro, nem sai elRei nunca às outras duas cercas de fora nem dizem que é visto senão daqueles que o servem dentro naquela cerca mais interior, os quais são todos capados, filhos de homens fidalgos, e como aí entram dentro, não saem até à morte fora dela.

Tem mais elRei oito fidalgos de seu conselho muito letrados e de grande prudência, com os quais despacha todos os negócios do reino, também estes nunca saem fora da terceira cerca por nenhum caso até à morte115.

Fernão aproveitava os momentos de lazer para vaguear pela cidade e ver à sua guisa o que mal pudera enxergar quando nela entrara metido em grilhões como bicho enjaulado. De início saíra para essas explorações com todos os companheiros, porém, não tardara a evitar a sociedade do bando, porque se tinham formado partidos, havendo entre eles constantes quezílias e desordens em público que escandalizavam os chins. Andava apenas com Borralho e Zeimoto que eram homens cordatos, de bom entendimento e como ele ávidos de novidades.

Entre os três, compraram o Aqusendoo, o livrinho que tratava das coisas da China, para lhes servir de cartilha e aperfeiçoarem a leitura dos caracteres, já que escrever se tornava tarefa assaz difícil, por ser a letra dos chins tão contrária à usada na Europa, bem pior do que a árabe ou a hebreia. O livro continha um manancial de informações sobre a terra e a sua gente, ciência preciosa para qualquer nação que quisesse fazer tratos pacíficos ou até assenhorear-se dela. Ao contrário dos restantes companheiros, sabiam que só teriam salvação e possibilidade de voltar a Malaca, se conseguissem compreender bem o espírito dos chins, se adaptassem e assimilassem o seu viver; podiam comprová-lo pelo modo como os guardas do monteo, seus companheiros de armas, mostravam gosto em ajudá-los na leitura e a esclarecer-lhes as dúvidas.

Todavia, apesar do seu evidente desagrado, para não dizer ódio, àquela terra, quando os nove se recolhiam para dormir, de ânimos sossegados pela ceia e amolentados de cansaço, sempre havia alguém que lhes pedia para contarem uma história ou superstição dos gentios.

– Dói-me ver como uma gente de tanta polícia vive na cegueira e ignorância do Deus verdadeiro – diz Valentim de Alpoim que é, de entre todos, o mais pio.

– São muito idólatras e contumazes – admite Cristóvão Borralho. – Duvido que em algum tempo possa haver cristãos chins! Só se Deus fizer outros de novo, porque estes que ao presente há na terra ninguém os há-de converter.

– O maior estorvo é serem sodomitas – interrompe-o Jorge Mendes, faceiro – e não quererem abster-se do pecado nefando, que entre os baixos é muito geral e entre os grandes pouco se estranha.

Todos riem, acenando a sua concordância. Fernão, que é o melhor contador de histórias do bando, começa a desbravar o texto do Aqusendoo:

– Diz aqui que Pan Ku saiu de um ovo para criar o Mundo e a Humanidade e, com um golpe do seu colossal machado, separou os dois princípios ou forças Yin e Yang, criadores de todos os objectos e acontecimentos.

– Um ovo de quê? Que cousa é essa?

– Raios partam se t’entendo! Então, esse deus era homem ou pássaro?

– Parece-me que o Yang tem a ver com o macho e o Yin com a fêmea, como o marido e a mulher num casamento – prossegue Fernão, sem se perturbar com a risota. – O marido é o céu, a mulher a terra: o céu é nobre e ocupa o espaço superior, a terra é baixa e ocupa o espaço inferior. O marido é o sol, a mulher a lua; o sol não tem imperfeições, a lua umas vezes é redonda, outras incompleta. O Yang dá vida às cousas, o Yin junta-se a ele e completa-as. Portanto, as mulheres têm como virtudes próprias a gentileza, a obediência e não campeiam pela força ou pelo raciocínio.

– Não está mal vista essa história! – brada Álvaro de Melo. – O homem nasceu pra mandar e a mulher pra obedecer porque, mesmo com freio, elas são a principal causa da perdição dos homens.

– Inda que imperfeitas e perigosas, sinto-lhes a falta. – suspira Meireles e põe-se a dedilhar a viola, de olhar ausente, como quem sonha.

– E eu, de tanto andar à míngua de mulher, até pareço um capado – recomeça Jorge, com o seu jeito mangador. – Já nem consigo levantar o morto!

– Nesta casa as fêmeas são bastas e nada feias, sobretudo a segunda concubina! – regouga Joaquim Pereira, quando os risos esmorecem. – O pior é que passam o tempo fechadas nas estâncias interiores, como as mouras, sem sequer assomarem às janelas, que também são gradeadas.

Cristóvão Borralho acrescenta:

– Só há uma porta de comunicação para as salas e câmaras exteriores que dão acesso à rua, onde o patrão recebe outros homens. Elas só podem aparecer nessa parte da casa quando o monteo as chama, e mesmo assim vêm sempre com um véu a tapar-lhes o rosto.

– Temos tido sorte – contrapõe Fernão –, porque o capitão Liu Xugang honra-nos com a sua amizade e recebe-nos como íntimos, permitindo que as suas mulheres, as filhas e demais parentas estejam de rostos descobertos na nossa presença.

– Isso é verdade – concorda Morosa, vendo como Fernão parece assustado com o rumo da conversa. – O monteo é um homem generoso, trata-nos como gente livre e honrada; não devemos fazer nada que o possa ofender.

– Eu contentava-me com uma serva ou escrava! – suspira de novo Meireles, como se não os tivesse ouvido. – Mas até essas andam guardadas pelos porteiros quando vão fazer recados ou buscar água para o banho das patroas.

– O fruto proibido é o mais apetecido – torna Pereira, mimando o jeito de quem come um fruto sumarento. – Assim, não é de estranhar que pratiquem a sodomia. Se ao menos pudéssemos espreitar as mulheres no banho.

– Está má hora quedo, pela tua negra vida! – grita Zeimoto, furioso. – Queres perder-nos a todos?

– Nem o penses sequer, bargante! – secunda Vicente. – Não cuspas na mão que te dá a esmola ou terás de te haver comigo.

Um rubor irado cobre o rosto de Pereira, ofendido pelo tom dos companheiros, contudo, vendo que ninguém vem em sua ajuda, solta uma falsa gargalhada, protestando:

– Só Jorge Mendes pode dizer chistes? Mais ninguém tem licença pra gracejar?

– Se queres fornicar – espicaça o visado –, nada melhor do que as putas do bairro das lanternas vermelhas! Dizem que são criadas na arte de servir e dar prazer a um homem. Mal receba a soldada é lá que me pilham! Preciso de ressuscitar o morto.

– E vocês – diz Vicente apontando para Fernão, Zeimoto e Borralho –, desta vez hão-de vir connosco para nos servirem de línguas. Não cuidem que escapam!

– Melhor ainda é a sua história da criação do mundo – Fernão volta a pegar no livro, fingindo não ter ouvido o companheiro, mas aproveitando para pôr um ponto final à querela –, que mostra como hão mister pregadores que lhes ensinem a nossa lei. Ora ouvi: O tal Pangu saído do ovo gerou a Terra e o Céu e, decorridos dezoito mil anos, deitou-se a repousar do esforço. A sua respiração criou o vento, a sua voz o trovão, o olho esquerdo o sol, o direito a lua; o corpo reclinado formou as montanhas, os cabos e as raias do mundo. Das suas veias, o sangue fez-se curso de águas poderosas, os rios correram livremente pelas terras, o seu suor, deslizando pelo corpo, gotejou nos solos em chuva benfazeja; dos seus músculos e nervos formaram-se os campos férteis, os seus ossos transmutaram-se em minerais. Por fim, os seres minúsculos que viviam na sua pele foram levados pelo vento da sua respiração e espalharam-se pelo mundo dando origem aos seres humanos.