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– É isso que aí vem ou estais a contar inzonas? Parece uma lengalenga para adormecer meninos!

– Ó Fernão, vou deixar de te chamar Mendes e sim Mentes – brada Gaspar.

– E, em vez de Pinto, passa a ser Minto! – acrescenta Álvaro, rindo também.

– Fernão. Mentes? – pergunta Pereira em tom de escárnio e conclui: – Minto!

– Então surgiram quatro heróis para instruir os homens – prossegue Fernão, imperturbável, apenas alteando a voz para se fazer ouvir no meio das gargalhadas. – You Cao Shi ensinou-os a construir casas de madeira, Sui Ren Shi mostrou-lhes como dominar o fogo, Fu Xi Shi adestrou-os nas práticas da caça, da pesca e da criação de gado, Shen Nong Shi deu-lhes a conhecer as ervas medicinais e o cultivo dos cereais. A estes heróis, seguiram-se os cinco imperadores.

Com a voz abafada pelas pragas, bocejos e roncos, cala-se por fim, resignado à bruteza dos companheiros que não têm como ele o espírito ávido de conhecer o mundo que os cerca, com todos os inconvenientes que a curiosidade pode causar.

Pelo Aqusendoo souberam que os naturais nunca tinham chamado China àquela terra. Tal nome fora invenção dos povos da Índia, onde os portugueses o tinham ouvido pela primeira vez. Em tempos recuados fora chamada Tamen, a nação dos Tamenjis, depois mudara de nome cada vez que uma linhagem de reis substituíra outra, por isso já fora Than (Sem Fim), In (Descanso), Hia (Grande), Ceu (Perfeito), Han (Via Láctea no Céu) e, por último, Ming (Clareza), a do imperador Jiajing.

No ano correspondente a mil cento e treze da era de Cristo, a cidade de Pequim fora vinte e seis vezes acometida pelos seus inimigos, assolada e posta por terra. Por isso, o rei Xixipão levara vinte e três anos a cercá-la de muralhas e cavas para fornecimento de água, tratamento de esgotos, transporte e defesa. Oitenta e dois anos mais tarde, o seu neto Jumbileitai continuara a obra de fortificação, fazendo a segunda cerca e mais cavas. A cidade tomara a forma de um quadrado, com cada lado virado para um dos quatro pontos cardeais, contendo três cercas concêntricas de cinco léguas de largura, oito templos-mosteiros postos nas direcções Norte, Sul, Este e Oeste e nos quatro pontos intermédios, correspondendo aos oito trigramas fundamentais do Yi Jing ou O Livro das Mudanças, com as adivinhações de Confúcio.

Pequim era atravessada em toda a largura e comprimento por mais de cem esteiros, construídos ao longo dos séculos, cruzados por mil e oitocentas pontes com arcos de pedraria muito fortes, colunas e bancos com encosto para os passantes se sentarem a descansar. O centro da urbe era a cerca de Zijincheng, a Cidade Púrpura Proibida, constituída por dezassete palácios de madeira com nove mil salas, onde vivia Jiajing, o Leão Coroado no Trono do Mundo.

Os seus paços correspondiam à constelação Ziwei ou Ursa Menor, e o imperador à Estrela Polar, um ponto central em torno do qual girava o mundo. Na sua qualidade de Filho do Céu, que governava por mandato celestial, Jiajing tinha de celebrar os principais ritos e sacrifícios como mediador entre o mundo terreno e o mundo divino. Era também o comandante supremo dos exércitos e o sumo magistrado que examinava pessoalmente todos os documentos de Estado e os emendava com a tinta vermelha do seu pincel de púrpura que só ele podia usar.

Dizia-se à boca pequena que Jiajing preferia viver fora da Cidade Proibida, deixando a governação do império nas mãos dos eunucos e dos letrados, para se dedicar aos prazeres da carne e à alquimia, em busca do elixir da juventude. No entanto, todas as manhãs, para dar o exemplo aos chefes de família, maridos, filhos e netos, o Filho do Céu ia visitar a mãe, a avó, as imperatrizes e consortes viúvas, as concubinas, suas e dos seus antecessores, levando-lhes mimos de doces e manjares. Para o seu harém contribuíam, de três em três anos, as famílias leais de todas as províncias da China, com as suas filhas de doze a quinze anos de idade, aspirantes à ordem das Xiun ou Mulheres Excelentes, as consortes e concubinas do imperador.

Em Zijincheng só entrava quem fosse convocado por Jiajing e ali viviam para o servirem até à morte, além dos cem mil eunucos e das trinta mil mulheres que eram o coração da sua corte, um corpo de guarda de doze mil homens, quinhentos oficiais da administração e governo com as suas famílias, além de um séquito de mais de duzentos estrangeiros, como mogores, tártaros e cauchins116, para sua protecção, por serem melhores de peleja do que os naturais.

Um profundo fosso com um muro vermelho muito alto separavam a Cidade Púrpura Proibida da Cidade Imperial, a qual se estendia pela segunda cerca, com a sua casaria muito nobre, povoada de infindas gentes que asseguravam a vida e o engrandecimento do império e dos seus senhores, mantendo na ordem e na sujeição os seus timoratos vassalos. Dentro desta cerca, onde estava a casa do monteo, a vida era intensa, com muito comércio e uma multidão a fervilhar de actividade como em colmeia.

Os chins eram muito dados aos prazeres da carne, inclusive ao da sodomia, mas o da gula era o mais desbragado. Fernão perdia-se na contemplação dos edifícios das estalagens, com seus jardins ou matas para passatempos de pescarias e caça. Estavam sempre cheias de gente para ver autos, danças e jogos ou para assistirem a banquetes esplêndidos, que chegavam a durar dez dias, com grande aparato e serviço de moças virgens, formosíssimas e ricamente vestidas. A música e as canções atravessavam os muros, chegando como um eco aos ouvidos dos portugueses:

Em Ch’an An embriago-me ao vento primaveril,

O meu gorro está vermelho de flores

Postas às três pancadas.

Vi a grandeza e o declínio do mundo,

Mas nem por isso eu próprio fiquei

Mais pobre nem mais rico117.

Em cada uma das suas cento e vinte praças nobres se fazia todos os meses uma feira, o que feitas as contas dava quatro por dia em cada ano, pelo que Fernão pôde ver dez ou doze, durante os seus dois meses de liberdade, pasmando com a infinita gente que a elas concorria, a pé ou a cavalo, para comprar quer aos bufarinheiros que vendiam nas suas caixas tudo o que se podia imaginar e seria impossível de descrever em tão poucas palavras quantas as necessárias para que o leitor não perca a sua paciência e repute esta sua narradora de prolixa e mentirosa ou de plagiadora de antigos livros chins, a mesma fama que acompanhou Fernão Mendes Pinto por muitos séculos.

Os livros impressos eram sem conto, vendiam-se muito baratos, por ser a arte de imprimir um ofício antiquíssimo naquela nação, decerto incrementado pelo grande número de escolas e universidades espalhadas pelo império, para formarem os mandarins, pois só estes podiam desempenhar ofícios de governação e aspirar a altos postos. Ninguém era mais respeitado ou honrado no império do que eles, pelas suas letras, sabedoria ou ciência, porque os seus estudos eram muito caros, longos e árduos, com exames dificílimos, cujos erros e reprovações se puniam com duríssimos castigos de açoites.

Fernão fora testemunha dessa relevância, ao integrar a guarda do monteo no cortejo do Xileyxipatou, o senhor de todos os nobres, que ia presidir à graduação dos lauteaas; sendo o mais alto chaem da Justiça, o séquito espelhava a magnificência do seu estado. Os escrivães e oficiais mais baixos abriam caminho, dando muitos brados para o povo se afastar e deixar as ruas livres à sua passagem, sob a ameaça de açoites, como havia feito a gente do chumbim que o conduzira engaiolado do cais à prisão. Fernão sorrira da comparação, vendo como o cortejo, que então o fizera pasmar, só lhe parecera grandioso por ainda pouco ter visto das cerimónias à charachina, pois nem de longe aquele se podia comparar ao deste mandarim.