Após os escrivães, iam quatrocentos upos, brandindo correntes de ferro que rojavam pelo chão com medonho estrondo, mais o corpo da sua guarda composto por trezentos mogores e vinte e quatro porteiros de maça; atrás destes cavalgavam doze peretandas ou corregedores, empunhando bandeiras e outros doze com guarda-sóis de cetim com hastes muito compridas.
Na cauda do cortejo seguia o dignitário Xileyxipatou, sentado num carro triunfal, levando à direita um menino vestido de branco, com as insígnias da misericórdia nas mãos e, à esquerda, outro menino trajado de vermelho, com os símbolos da justiça, ambos montados em cavalos ajaezados e paramentados com as respectivas cores.
Atrás do carro, cavalgando facas brancas com jaezes de prata e gualdrapas de seda, trinta e seis mulheres tangiam e cantavam com vozes muito harmoniosas, seguidas por sessenta oficiais de justiça, a pé com espadas douradas às costas. Fechavam o desfile vinte cavalos, com ricos jaezes, cobertas de brocado, cada um acompanhado por seis alabardeiros e quatro estribeiros.
– É melhor ver por si próprio uma vez do que ouvir cem vezes de outros! – exclamara Fernão, terminada a cerimónia.
115 Este anónimo homem honrado pode ter sido Fernão Mendes Pinto, mais tarde companheiro do jesuíta no Japão.
116 Mogores, do persa Mughal, designava um dos ramos dos mongóis da Ásia Central, ocupado no século XVI na conquista do norte do Indostão; tártaros eram os mongóis da Tartária, assim denominados pelos chineses e portugueses; cauchins eram os naturais da Cochinchina.
117 Excerto de um poema de Lu-Yin (1125-1210).
X
Caça, pesca, guerra e amores, por um prazer dão mil dores.
(português)
Lição de Sunü jing, a Donzela Branca, ao imperador Huangdi118:
Huangdi: Mesmo quando sinto um forte desejo de sexo, a minha haste de jade não se ergue. Fico tão embaraçado que a minha face cobre-se de vergonha e de gotas de suor. Contudo, o meu desejo é tão forte, que recorro à ajuda da minha mão. Que devo fazer?
Sunü: Os homens costumam cometer um erro, enquanto fazem amor. As mulheres conquistam os homens como a água conquista o fogo. Os conhecedores da arte de fazer amor são como aqueles que sabem misturar os cinco sabores para fazerem uma boa refeição, como os conhecedores do modo Yin e Yang que gozam dos cinco prazeres da vida. Um homem deve saber como controlar o seu fluxo, ele não pode apreciar a vida se ignorar a arte do amor. Homens e mulheres são como o Céu e a Terra, cuja eterna natureza jaz na sua unidade.
Huangdi: Que acontecerá se não tivermos sexo?
Sunü: Tal não deve acontecer! Yin e Yang têm de alternar como tudo o mais na natureza. Os seres humanos devem seguir os ritmos do Yin e Yang, tal como seguem as mudanças das estações.
Huangdi: Como se chega à união harmoniosa do Yin e Yang?
Sunü replica: Para um homem o elemento essencial é reter o seu fluxo, para evitar o enfraquecimento da sua força; para uma mulher é o orgasmo. Os que não seguem este método enfraquecem. A função do orgasmo da mulher é manter o equilíbrio das energias, acalmar o coração, fortalecer a vontade e desanuviar a mente. Ao conciliar o orgasmo da mulher com a preservação das energias do homem, ambos experimentarão uma profunda sensação de bem-estar, sem sentir calor e frio, fome ou saciedade, para o corpo desfrutar o seu prazer em paz.
Os chins exerciam um grande fascínio sobre Fernão, Zeimoto e Cristóvão por serem um povo de muita polícia, governado por rígidos preceitos e cerimónias para cada acto das suas vidas, com uma sabedoria ou arte de viver como os portugueses nunca tinham visto em outro povo. Os três amigos esforçavam-se por aprender os seus usos, leis e crenças, a fim de não cometerem actos ofensivos que os levassem de novo à prisão com a pena agravada.
– O Yang é o princípio masculino, activo, diurno, luminoso e quente que governa os homens e Yin o princípio feminino, passivo, nocturno, sombrio e frio, próprio das mulheres – discorre Fernão. – Estes dois princípios opostos determinam todos os fenómenos do universo, todos os processos e situações do mundo, como a subida e a queda, a harmonia e o conflito. É assi, Cristóvão?
– Estás a converter-te à lei dos gentios? – ri-se Zeimoto.
– Vem no nosso livro – contrapõe Borralho – e já concordámos em que nos será útil conhecer as suas crenças. Pelo que eu entendi desse arrazoado, Fernão, ao Yin corresponde a linha quebrada, os números pares e o quadrado que, na sua forma pura, representa a Terra. Ao Yang corresponde a linha contínua, os números ímpares e o círculo, representando o arco do firmamento, o Céu. Os dois princípios são invisíveis, mas revelam-se através de cinco elementos – Água, Fogo, Madeira, Metal e Terra.
– Madeira e Metal não fazem parte dos quatro elementos primordiais, mas sim o Ar! – exclama Zeimoto.
– Para os chins, são cinco elementos que tanto podem destruir-se uns aos outros, como renovar-se: a Madeira destrói a Terra, porque a vegetação esgota o solo e a Terra destrói a Água quando a absorve; esta apaga o Fogo que, por sua vez derrete o Metal, o qual corta a vegetação, destruindo a Madeira. E a Madeira produz Fogo, que com as cinzas cria Terra, a qual, produzindo minérios, dá origem ao Metal, que faz brotar a Água em forma de fluidos que criam a Madeira ao gerarem vegetação.
– Silêncio!
Calam-se porque o saimento da parente do monteo entra agora no cemitério. O capitão favorecia os três degredados, agradado pelo seu esforço e interesse em aprender, tendo por boa obra educá-los como gente civilizada, por isso, decidira levá-los no seu séquito às exéquias da tia.
Durante as cerimónias, os três amigos sentem a dor da saudade e da solidão abater-se sobre eles como um pelouro de basilisco. O silêncio apenas quebrado pela melopeia dos cânticos e pelo sussurro do vento nas árvores, torna mais pungente o medo da morte, mais duro de sofrer naquela paz do que na aflição do naufrágio, com o tétrico quadro das ossadas empilhadas como uma montanha por trás de incontáveis capelas cheias de caveiras até ao tecto, com as estátuas aterradoras do seu culto, como a da serpente enrolada que tem na sua frente o homem com um pelouro na mão em jeito de o lançar.
Representam a Serpe Tragadora e o Muxiparão, o tesoureiro dos mortos, o qual dá o nome ao cemitério e impede a serpente de os levar para a Diyu, a Côncava Funda da Casa do Fumo – o reino governado por Yanluo Wang –, um labirinto sombrio de patamares e câmaras que servem de punição e renovação dos espíritos, preparando-os para a sua reincarnação, porque, quando a serpente morrer, os mortos ressuscitarão e irão morar para sempre na Casa da Lua. É a primeira vez que os três portugueses ouvem falar do Inferno e do Céu dos chins, a menos que tenham entendido mal a arenga dos monges que tratam da cremação do corpo.
Todos os parentes da defunta compram aos sacerdotes do pagode letras de câmbio, para ela ter dinheiro no Céu, assim como algumas caveiras, para que o porteiro do Paraíso, vendo a sua alma acompanhada destes servos, a receba como pessoa de qualidade e a deixe entrar, pois se for sozinha não lhe abrirá as portas.
– Letras de câmbio da terra para o Céu? – murmura Zeimoto, incrédulo.
– Os monges dizem-lhes que sem estes câmbios se não podem salvar por nenhuma via.
– E esta gente, de tanta polícia, crê nestes sacerdotes de Satanás?
– Não vejo grande diferença entre estas letras de câmbio dos gentios e as indulgências que pagamos à nossa Santa Madre Igreja, para os nossos pecados nos serem perdoados – retorque Fernão e cala-se, arrependido do desabafo que, se chegasse aos ouvidos das autoridades portuguesas, lhe poderia trazer dissabores; sossega-o o pensamento de que os amigos jamais o denunciariam por herege ou cristão-novo.