rem umas casas em que se agasalhasse, já que não prestavam para mais, nem por então podiam mostrar o muito que lhe deviam, conforme o desejo que todos tinham disso, e outras palavras de cumprimentos muito copiosos a que ele respondeu como entendeu que era razão, e lhes quis fazer a vontade no que lhe pediam. E nas duas lanteas em que lhe trouxeram o refresco, mandou os feridos e os doentes que havia na armada, os quais os de Liampó agasalharam com muita caridade, e os repartiram pelas casas dos mais abastados, onde foram curados e providos de tudo o necessário muito cumpridamente sem lhes faltar nada. E em todos estes seis dias que António de Faria aqui esteve, não ficou homem de nome na povoação ou cidade, como todos lhe chamavam, que o não viesse visitar com muitos presentes de muitas invenções de manjares e refrescos, e frutas, em tanta abundância que todos pasmávamos do que víamos, e principalmente do grande concerto e aparato que estas coisas traziam consigo.
O Corsário dos Sete Mares - Fernão Mendes Pinto
Fernão Mendes Pinto é uma figura singular da nossa História e Literatura, tanto pela vida que viveu como pela sua obra Peregrinação. Foi também, como é frequente acontecer com os que mais contribuem para o conhecimento e valorização de Portugal, injustiçado e desacreditado pelos seus compatriotas, incapazes de apreciarem o valor do seu livro, publicado em 1614, trinta e um anos após a sua morte.
Nesse século XVII, a sua obra (de difícil leitura nos nossos tempos) teve uma enorme repercussão na Europa, com vinte edições em várias línguas, contribuindo para o conhecimento pelos europeus dos povos do Oriente, dos costumes e mentalidades de variadíssimas civilizações até então totalmente desconhecidas. Independentemente das imprecisões e dos erros cronológicos ou dos exageros e das efabulações que contribuem para o fascínio da Literatura de Viagens, em que se insere a Peregrinação.
Posteriormente, nos finais do século xix e também no século xx, as opiniões dos críticos dividiram-se sobre a importância e o valor do autor e da sua obra. Os portugueses, seguindo, como é seu hábito, as vozes dos críticos ingleses – que se esforçam por enaltecer os seus heróis e apagar ou destruir os das outras nações que lhes foram rivais, em particular o Portugal dos Descobrimentos –, encarniçaram-se contra a inveracidade da sua narração.
O galardão que lhe ofereceram pela singularidade do seu génio e pela sua obra única – sem comparação na Europa do seu tempo – foi o chiste que perdurou, denegrindo o seu nome e o seu trabalho: Fernão, Mentes? Minto.
No entanto, Fernão Mendes Pinto faz também parte da Literatura e História de países tão longínquos como o Japão, a Birmânia ou a Tailândia, surgindo como um dos primeiros portugueses a tocar solo japonês e o noivo do primeiro matrimónio de uma japonesa com um ocidental, um caso que servirá de suporte ao mito da Madame Butterfly, na tradição oral e escrita de cerca de quatrocentos anos; ou ainda como cronista quase único das guerras da Birmânia com o Sião, nos finais da década de 1540, que serviram de base para o impressionante filme histórico A Lenda de Suriyothai, de Chatrichalerm Yukal (2001).
Figura polémica, ele pertence à galeria de personalidades marginalizadas ou injustamente ignoradas que tenho procurado reabilitar em benefício dos meus leitores, como Bartolomeu Dias e Diogo Cão em O Navegador da Passagem, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva em O Espião de D. João II e tantos outros que os portugueses esqueceram ou desconhecem ainda, substituídos no nosso tempo por famosos de vidas fugazes e vazias.
No entanto, hesitei sempre em escrever um romance sobre este anti-herói desmesurado, de quem pouco mais se sabe além daquilo que ele contou na sua Peregrinação, uma vida de contínuas viagens, aventuras e desastres que davam e sobejavam para outras sete vidas. Embora ninguém pudesse oferecer melhor exemplo e suporte para se escrever a saga dos portugueses no Oriente longínquo, parecia-me uma tarefa impossível romancear a vida de Fernão Mendes Pinto sem correr o risco de me colar à sua narrativa, fazendo uma paráfrase ou uma glosa da sua obra.
Como pretendo que cada um dos meus livros seja diferente dos anteriores, necessito de experimentar estruturas e processos narrativos distintos, para manter viva a chama da imaginação e da paixão da escrita que me faz sentir viva e me alimenta, no intuito de causar surpresa aos meus leitores, permitindo-me o prazer de um diálogo renovado a cada romance.
À dificuldade de conciliar as peregrinações de Fernão por inúmeros mares, ao som da aventura, para mais enredada nos erros de datas, lugares e acontecimentos (compreensíveis, por estar a contar tais sucessos quase trinta anos depois de os ter vivido), com a saga dos portugueses no Oriente – com que pretendo completar a narrativa dos Descobrimentos que venho fazendo ao longo das minhas obras –, acrescentei uma estrutura demasiado complexa de concretizar, mas que, por meio de múltiplas intertextualidades, me permitia alargar o conhecimento dos meus leitores, espicaçar-lhes a curiosidade e diverti-los. Levando-os, numa viagem no tempo e na pele das personagens, ao encontro de mundos antigos e de outros povos, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes na sua humanidade. Daí a razão para cada capítulo começar por um provérbio e um texto da época retratada, português ou dos muitos países visitados e até imaginados, desde o mar Roxo à Terra Australis, na busca incessante da mítica Ilha do Ouro.
A divisão do romance em sete mares, de acordo com as áreas geográficas por onde Fernão navegou, teve de jogar com mais de uma viagem ao mesmo lugar, feitas em épocas diferentes, intercaladas com as de outros mares que poderiam estar nos seus antípodas. Por isso, a sua narradora, meu caro Leitor/Leitora, ousa guiá-lo algumas vezes por entre esses baixios e restingas para que chegue a bom porto, estabelecendo consigo um diálogo mais cúmplice e íntimo.
Recriando com fidelidade esses mundos de antanho, sempre através do olhar do visitante, maravilhado ou repugnado com o que via. Desta forma, certas atitudes, falas e pensamentos das personagens podem veicular mentalidades e comportamentos que, nos nossos dias, não podemos deixar de considerar preconceituosos ou mesmo racistas, mas que no tempo dos Descobrimentos traduziam o ponto de vista próprio do homem europeu, que se julgava o centro do mundo, dificilmente aceitando o Outro, de raça ou credo diferentes, como detentor de uma civilização e cultura distintas.
Procurei manter em Fernão Mendes Pinto, a personagem central do meu romance, essa característica picaresca, tão portuguesa, do andarilho aventureiro que, graças à sua esperteza e expediente (vulgo desenrascanço), consegue salvar-se das situações mais difíceis e perigosas e sobreviver. Contudo, ele é muito mais do que uma figura de comédia, a sua inteligência e curiosidade, a ânsia de conhecer o mundo, os sentimentos de piedade e generosidade, o seu espírito crítico, evidentes na sua obra, dão-lhe uma dimensão humana a que dificilmente se pode ficar indiferente.
Ele é também o pretexto para o encontro ou a evocação de outras histórias com heróis conhecidos ou anónimos, cuja grandeza e miséria, tão humanas, construíram o nosso Passado colectivo, criando os alicerces do nosso Presente e, de algum modo, marcando também o Futuro dos portugueses.
Se o leitor chegar ao fim do romance com desejos de saber mais destas gentes e da sua saga no Oriente, será a minha maior recompensa pelos três anos de trabalho que me levou a fazê-lo. Oxalá.
REINO DO PRESTE JOÃO
[Para que vejam] estes meus trabalhos, & perigos da vida que passei no discurso de vinte & hum, em que fuy treze vezes catiuo, & dezassete vendido, nas partes da India, Etiopia, Arabia feliz, China, Tartaria, Macassar, Samatra, & outras muitas prouincias daquelle oriental arcipelago dos confins da Asia, a que os escritores Chins, Siames, Gueos, Elequios nomeão em suas geografias por pestana do mundo, e daqui por numa parte tomem os homens motiuo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem de fazer o que deuem, porque não há nenhuns, por grandes que sejão, com que não possa a natureza humana, ajudada do fauor diuino.