Liu fá-los sentar repartidos pelas mesas dos convivas, postas sem toalha, mas com guardanapos e louça de porcelana fina, a rescenderem de carnes de galinha, adem e porco, assadas ou cozidas, cortadas em pedacinhos, adubadas com muitas especiarias, alho e conservas, verdadeiros manjares dos deuses para a maioria dos famintos folangji que durante um ano tinham vivido de esmolas e do abominável rancho da prisão. Pluma de Fénix, Sino de Prata e Gota de Orvalho – três moças formosíssimas, tanto quanto permitem adivinhar o alvaiade e o arrebique com que pintam todo o rosto – conversam com os hóspedes, servindo-lhes vinho e oferecendo-lhes iguarias.
Tal como o monteo previra, os seus distintos convidados folgam muito com os estrangeiros, mirando-os sem disfarçarem a curiosidade, burlando-se com mil ditos e risos dos seus modos bárbaros, que eles sofrem de bom grado, conquanto possam comer à tripa forra e fartar o estômago.
Desde que pisara a terra da China, Fernão esforçara-se por comer ao seu modo com os dois pauzinhos na mão direita e uma taça de porcelana na esquerda e fazia-o já sem dificuldade, não perdendo um só grão de arroz. Prezava-se de ser cortês e ter boas maneiras, aprendidas na sua juventude ao serviço de homens fidalgos como Francisco de Faria ou, em particular, o Senhor D. Jorge, o Mestre da Ordem de Santiago, tendo assistido inúmeras vezes às refeições da nobreza e observado os seus gestos.
Sabia que o copo e a faca bem limpa deviam estar à esquerda, a fatia do pão à direita do prato, o guardanapo, se lho fornecessem, posto sobre o ombro esquerdo ou no braço. Devia lavar as mãos antes de comer, cortar um pedaço de carne da travessa, tomá-lo com três dedos e pô-lo no prato ou, à falta dele, sobre uma grossa fatia do pão. Não era coisa de gente com polícia ser o primeiro a servir-se, meter as duas mãos dentro da bacia, remexer na carne para escolher o naco mais apetitoso, lançar na travessa comum o pedaço de carne e o osso roídos ou mergulhar no molho o pão mordido.
Tudo isso era próprio de gente bisonha, tal como bufar, estalar os lábios ao comer, lamber os dedos e limpá-los às vestes, tirar comida dos dentes com a faca, cuspir na mesa, assoar-se à toalha, ao chapéu ou à roupa ou soltar peidos, sem se dar sequer ao trabalho de apertar bem as nádegas para os conter ou de tossir para esconder o ruído da explosão.
Para grande gáudio dos convidados chins, é desse modo grosseiro que se estão a comportar quase todos os seus companheiros e Fernão trata de afogar a vergonha no vinho de arroz, regalando-se com os bolos fritos de mel e açúcar ou os doces de escudela de que se serve com uma colher de prata.
Os chins fazem-lhes as costumeiras perguntas sobre os encontros com os corsários, o naufrágio, a prisão e, tal como haviam feito em casa dos grandes senhores, Pinto, Borralho e Zeimoto tomam a seu cargo as despesas da conversa, contando-lhes a sua história que, de tantas vezes repetida, já lhes soa a verdadeira. Os relatos dos combates, molhados com muitas lágrimas, são tão convincentes que os interlocutores, cheios de dó, não suspeitam sequer terem ante si os verdadeiros corsários e não as suas vítimas.
Pluma de Fénix ergue-se, iniciando ao som do erhu e da flauta, tocados pelas companheiras, uma dança lenta, condicionada pelos passos saltitantes, toda feita de gestos esculpidos como os uma estatueta de porcelana. O efeito é tão belo que, quando termina, o silêncio parece ficar suspenso dos seus dedos, antes de romperem os aplausos dos portugueses e dos chins, a quem a bebida copiosa avermelhara os rostos e animara os espíritos.
Gaspar, a pedido do monteo, toca algumas canções portuguesas, sendo acompanhado pelo animado coro dos companheiros, esquecidos das anteriores misérias graças ao bem-estar que lhes causam o vinho, a comida e a presença das mulheres.
Segue-se um jogo de rondós, em que Gota de Orvalho, a azougada tocadora de flauta, faz um verso e o convidado a quem ela se dirige acrescenta logo o segundo, continuado pelos restantes convivas; os que se enganam ou falham, além de sofrerem a troça dos mais talentosos, são obrigados a beberem um copo de vinho a cada engano, castigo que contribui largamente para soltar as línguas e a sensualidade, sobre os hábitos sexuais dos folangji.
– Na vossa terra, os homens só têm uma mulher? – escandaliza-se um mandarim idoso, tio do monteo. – Se um homem possuir sempre a mesma mulher, a essência feminina do Yin torna-se fraca e não aproveita ao homem. O Yang masculino é modelado pelo fogo, o Yin pela água. Tal como a água pode apagar o fogo, o Yin pode diminuir o Yang se o contacto se prolongar durante muito tempo, a essência Yin, absorvida pelo homem, crescerá mais forte do que a sua própria essência, podendo destruí-la. Se um homem quiser permanecer jovem e belo para sempre, deve copular pelo menos com dez mulheres num só dia, mas sem nunca soltar o seu sémen.
– Esposa, pela nossa lei, só podemos ter uma – esclarece Zeimoto, sem todavia perceber o que o homem dizia –, embora muitos homens tenham também mancebas e escravas, mas fora de sua casa, em segredo, para que a consorte legítima não saiba, porque se ela suspeitar, o marido não mais terá sossego.
– O homem e a mulher são as raízes do Yang e do Yin, respectivamente – insiste o mandarim. – O homem tem de ter sempre duas mulheres, porque ao Yang correspondem os números pares, ao Yin os ímpares.
– Como fazeis para que as vossas mulheres e concubinas vivam juntas em tamanha harmonia? – pergunta Fernão.
– Nem sempre assim é, muitas vezes por culpa do marido – esclarece um oficial de patente superior à de Liu Xugang, que o escuta com muito acatamento. – Para conseguir a harmonia e felicidade no meu lar, quando comprei a minha última concubina e a levei para casa, embora me apetecesse fechar-me com ela no quarto de cama três dias seguidos, não o fiz. Dei muito mais atenção à minha esposa e às outras concubinas, para que não se sentissem humilhadas ou preteridas, contudo, sempre que me deitava com qualquer delas para os jogos da nuvens e da chuva, mandava vir a neófita para junto do leito, recomendando-lhe que prestasse muita atenção ao que a sua irmã fazia. Depois das quatro ou cinco primeiras noites passadas com as minhas mulheres, com a donzela a ver, deitei-me pela primeira vez com ela, desflorando-a, na presença da minha mulher e concubinas, para lhes mostrar que não a desejava ou lhe queria mais do que às outras. E assim conquistei a paz.
Soam aplausos e o mandarim felicita-o:
– Foi uma estratégia de mestre, própria de um adepto da Arte do Quarto de Cama. Pena que se tenha proibido a publicação dos tratados taoistas que poderiam ser de grande utilidade e fonte de conhecimento para estes estrangeiros que se mostram ávidos de aceder à nossa requintada civilização.
– Em verdade, deveríamos ter em conta que as mulheres estão sempre em casa, ocupadas com tarefas insignificantes de arroz e sal ou a enfeitarem-se para o esposo, tendo como divertimentos apenas a música, os bordados, os jogos de cartas ou o xadrez. A sua única satisfação e prazer residem nos jogos de nuvens e chuva com o seu senhor.
Voo de Fénix envia um sorriso de gratidão ao jovem letrado que acaba de falar e se ruboriza desvanecido com a atenção da formosa.
– Todo o homem devia conhecer bem a arte do quarto de cama para satisfazer a sua esposa e concubinas. As mulheres insatisfeitas são quezilentas e de difícil trato.
– A mestria do homem nas artes do amor tem mais valor para uma mulher do que a juventude ou a beleza do amante – acrescenta Gota de Orvalho, com provocadora zombaria para o moço letrado, agradecendo com acenos graciosos os calorosos aplausos da assistência.