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– Conheceis os nossos Jardins de Flores? – pergunta aos folangji um abastado mercador de seda. – Não há melhor lugar para um homem esquecer as agruras da vida, cousa de que, a meu ver, estais bem necessitados.

– Quem nos dera, pois com tão prolongado jejum, já quase nem sabemos como é feita uma mulher! – Borralho suspira ruidosamente, arrancando grandes gargalhadas. – Porém, esses paraísos estão vedados aos que têm as bolsas vazias.

– Tendes os Barcos de Flores, no rio, embora as mulheres tanka não sejam muito educadas nem requintadas e falem em dialecto – sugere Sino de Prata, a cantora, com uma nota de desprezo na voz. – No entanto, podeis ter aí companhia, desenfadamento e ceia por módico preço.

– Deveis, todavia, tomar alguns cuidados na escolha do lugar e das moças – avisa o mandarim – porque muitas dessas mulheres passam ao homem o veneno da sua ameixa, disfarçando com sinais as manchas amarelas da sua pele. Deveis lavar-vos sempre antes e depois de estar com uma tanka e, antes do coito, untar a haste de jade de geleia ágar-ágar para cobrir feridas, prevenindo infecções.

– O velho está a referir-se ao mal de Cantão – diz Fernão em português para os companheiros.

Era chamado pelos médicos e boticários morbo napolitano e fazia muitas vítimas entre os portugueses da Índia que o tratavam com salsaparrilha e mercúrio, mezinhas assaz dolorosas, de pouco proveito. Sino de Prata, a mais velha das três moças, receita:

– Quando a haste de jade não se ergue, o remédio para a fortalecer é um xarope feito de um composto de cogumelos, folhas de sempre-verde e sementes de salsa, linho-de-cuco e laranja; basta tomar uma pequena colher três vezes ao dia, juntamente com vinho de arroz, para em poucos dias se fazer de novo forte.

– Pó de corno de veado com raiz crua de acónito é mezinha infalível. O general Wu tomava-o e teve um filho já depois dos oitenta!

As gargalhadas dos convivas premeiam a maledicência do militar perito na arte do amor, o qual, vendo o chão juncado de comida em volta dos cinco folangji que não falam nem compreendem a língua, não perde a oportunidade de os aconselhar:

– Voltando aos Barcos de Flores, mesmo nos mais modestos, deveis tratar as mulheres com a maior cortesia, ainda que não vos entendam, mostrando-vos carinhosos nos vossos gestos e falando-lhes com gentileza. Vós que sabeis a nossa língua, referi-vos não por nomes vulgares mas por palavras doces e poéticas às partes secretas das vossas parceiras, para que a vossa haste de jade tenha facilmente acesso à porta de jade ou do palácio de cinábrio, à entrada do quarto da felicidade, para chegar ao coração da flor, à peónia vermelha, ao fosso dourado.

– O pilar do dragão celeste tem de estar em harmonia com a flor da peónia aberta – acrescenta o velho mandarim, quando os risos diminuem, não querendo ficar atrás do guerreiro em assuntos da arte do amor –, por isso deveis conter o vosso ímpeto, para não enfraquecer o Yang, enquanto despertais o Yin da mulher, acariciando-lhe os seios, sugando-lhe os mamilos como uma criança que mama, percorrendo-lhe o corpo com os lábios, a língua ou até uma pena de pavão, avançando sem pressas ao encontro do campo divino, do jardim sombrio, entre as coxas de seda, até que o seu lótus vermelho se abra para receber a vossa haste de jade.

Quando, à hora da quinta pancada do tambor (cerca das três da madrugada), bêbados como cachos, os hóspedes se despedem do seu anfitrião, juram-lhe que aquela festa lunar foi a melhor das suas vidas. Os três portugueses, esgotados pelo esforço de responder às intermináveis perguntas, perturbados pela conversa dos bordéis e das manhas a usar no quarto de cama, já não são capazes de balbuciar sequer um agradecimento ou desejar uma boa noite, a vossas mercês na arrevesada fala; Gaspar Meireles tem os dedos inchados de tocar e está quase sem voz de tanta cantoria.

Liu Xugang fica tão orgulhoso do triunfo do seu banquete que não regateia agradecimentos aos folangji, dando a todos folga no dia seguinte para usarem do seu tempo como melhor lhes aprouver.

– Ide fazer uma visita aos Barcos de Flores – sugere, antes de se recolher, rematando: – Adiantar-vos-ei parte da soldada.

XII

Espere o melhor, prepare-se para o pior e receba o que vier

(chinês)

As mulheres de partido, de nenhuma qualidade as consentem morar dos muros pera dentro. E fora no revalde têm suas ruas próprias em que vivem, fora das quais não podem viver; cousa que a nós faz avesso. Todas as mulheres de partido são cativas, criam-nas pera isso desde meninas, compram-nas às mães e ensinam-nas a tanger viola e outros instrumentos e a cantar. E as que melhor sabem fazer isto, porque ganham mais, valem muito. As que isso não sabem valem menos. Os senhores, ou lhes levam as honras ou lhas vendem; e quando hão-de ser postas nas ruas das mulheres de partido, são escritas por um oficial del Rei em um livro e o senhor é obrigado a acudir cada ano com um tanto a este oficial; elas são obrigadas a responder a seu senhor cada mês com um tanto. Quando são velhas, a poder d’arrebique e alvaiade, as fazem parecer moças. E depois que já não são pera aquele ofício ficam livres de todo e sem nenhuma obrigação nem ao senhor nem a ninguém, e comem então do que ajuntaram.

(Padre Frei Gaspar da Cruz da Ordem de São Domingos)

De manhã, Fernão, Cristóvão e Zeimoto escapam-se da casa do monteo, à sorrelfa, para não terem de passar o dia com o bando, temerosos de que os ares da liberdade e o muito vinho que não deixarão de beber levem os companheiros a cometer desacatos metendo-os em sarilhos.

Os três amigos não ficaram incólumes aos vapores de sensualidade e erotismo da noite anterior, tendo de procurar palavras e imagens de sexo, para trasladar a conversa dos chins aos companheiros. Sobretudo quando os senhores travaram acesa discussão sobre as inumeráveis posições místicas, a fim de determinar quais as mais indicadas para o homem atingir a perfeita e harmoniosa união do seu Yang com o Yin das mulheres, suas ou alheias: para os portugueses, era como se estivessem a ver dentro das suas cabeças um livro dessas gravuras pecaminosas que a Igreja condenava.

Fernão sofrera o festim como um tormento deleitoso, por lhe ter feito reviver os momentos mais acesos da sua paixão por Huyen. A música e o canto das flores contratadas pelo monteo tinham-no transportado ao junco de António de Faria, para contemplar a Noiva Roubada, que parecia acariciar o erhu com os dedos transparentes, e ouvir-lhe na maviosa voz os versos magoados com que cantava o seu amor por outro homem. Assim, fora espairecer, com Borralho e Zeimoto, para os bairros nobres da cidade.

Fazem uma pausa para comer, numa praça com um templo, onde um velho, sentado numa banqueta alta, conta histórias a uma meia centena de homens, mulheres e crianças que o escutam sem arredar pé. Um mendigo pede-lhes esmola e Fernão vê que ele traz um Nenúfar Invertido.

– Tiremos a sorte – diz para os companheiros. – Quero saber o que nos reservam os Fados.

– Contra a boa e a má sorte, só tem poder a morte – sentencia Cristóvão.

– Pergunta se algum dia volveremos a Malaca. – chasqueia Zeimoto.

O Nenúfar Invertido é um anel que o adivinho traz suspenso por uma corda, de onde pendem fitas de seda vermelha com caracteres pintados que faz girar diante dos portugueses. Fernão agarra numa das franjas, parando a girândola, e lê os dois símbolos, procurando interpretá-los. Como a maioria dos caracteres da escrita chinesa, os que lhe couberam em sorte podem ter muitos significados e nem a ajuda do mendigo lhes esclarece a profecia.

– Ficamos libertos e presos? Partimos para volver atrás. que quer isso dizer?

– Um senho de infortúnio e outro de fortuna? Não entendo.

– Deus ainda nos castiga por crermos em adivinhações de gentios!

Os chins eram muito supersticiosos e nada faziam, nem tomavam qualquer decisão importante nas suas vidas sem auscultarem os seus oráculos, jogos da sorte ou adivinhação, consultando os mestres do I-Ching, o misterioso Livro das Mudanças ou o popular Lien-hoa-lo, o Nenúfar Invertido. Vivendo há bastante tempo entre este povo, apesar de afirmarem a sua descrença de cristãos nestas práticas gentias, os portugueses já não eram totalmente isentos da sua influência, pelo que sentem um arrepio de inquietação com o obscuro vaticínio. A fim de desanuviarem os receios e premonições, desafiam-se a passear na mais celebrada rua de Pequim, que desemboca na praça onde se acham, a qual fora muito falada pelos hóspedes do monteo, como um deleitoso jardim, onde se podia fruir do vento, das flores, da neve e da lua.