É um fojo de mulheres belíssimas e privilegiadas, em relação às de partido que pagam tributo, por serem, na sua maioria, mulheres viúvas ou casadas que fugiam aos maus tratos dos maridos e exerciam o seu ofício em casas protegidas pelo governo; ali ninguém lhes pode fazer mal, porque têm seguro do Tutão, a autoridade suprema do reino. Também as há cativas, compradas e criadas desde meninas para agradar aos homens, sendo ensinadas a tanger vários instrumentos, a dançar e a cantar na perfeição, rendendo bom dinheiro aos seus senhores.
Pasmados com o seu requinte e beleza, os portugueses apalpam com dedos inconsoláveis as bolsas com a magra soldada, ansiando por um milagre que não surge, porque, à qualidade destas formosas servas do prazer, corresponde o alto preço dos seus serviços, muito além das posses dos três degredados que se sentem como Tântalo a morrer de fome e sede, rodeados dos mais apetitosos frutos e néctares, todavia incapazes de lhes chegar. Se queriam companhia e conversação com mulheres, não lhes restava outro remédio senão procurá-las nos arrabaldes mais modestos da cerca exterior ou nos barcos das tanka, essas mulheres de partido que estão proibidas de morar dentro da cidade e têm as suas pousadas na cidade flutuante de onde não podem sair.
Foi à entrada do cais das lanternas vermelhas que os seis companheiros os apanharam e não mais os largaram, arrastando-os para os ansiados barcos de flores, a fim de saciarem o prolongado jejum de mimos feminis. Manifestam ruidosamente a alegria pelo dia de folga e pela bolsa onde chocalha a prata que lhes dará acesso ao paraíso descrito pelos ilustres convivas da noite anterior. Com chistes brejeiros, evocam o traslado dessa lição da arte do quarto de cama, feito pelos seus línguas em termos tão ardentes e imagens tão sugestivas que, aliados à presença das cantoras e dançarinas, a uns tinham quitado o sono e a outros povoado os sonhos de imagens sensuais, deixando-os a todos exauridos de forças, pálidos como convalescentes de sezões.
– Precisamos de vossas mercês como línguas – brada Valentim, de olhos brilhantes –, para nos fazermos entender das beldades e termos conversação com elas.
– Não se diz ter conversação com a moça – zomba Gaspar –, mas banhar o corpo com ela ou meter a enguia na cova. Não haveis aprendido nada da lição de ontem?
– Eu não quero falatório – remata Pereira, mal-humorado. – Para mim, vai ser atar e pôr ao fumeiro.
A grande cidade feita de barcos119 tem a mesma ordem, nobreza e concerto da urbe que se ergue em terra, com mais de duas mil ruas de embarcações unidas umas às outras, muito compridas, direitas e fechadas com barcos de ambos os lados, cobertas com toldos de seda, enfeitadas com bandeiras e estandartes. Nas feiras, que duram quinze dias, da lua nova até à lua cheia, a cidade movediça aumenta de tamanho, espraiando-se por uma légua de comprido ao longo da terra e um terço de légua de largo, com mais de vinte mil embarcações. Tanta é a gente que vive pelos rios como a que habita em terra nas vilas e cidades, pelo que, se não estivesse sujeita a muita ordem e governo, se comeria uma à outra.
Por todo o lado, há casas de oração, ao modo de capelas, erguidas em barcaças tão grandes como galés, com toldos revestidos a folha de ouro, para abrigarem os ídolos das suas muitas crenças, onde os sacerdotes fazem as orações e os sacrifícios. Ali, como em terra, se acha toda a sorte de oficiais mecânicos e de comerciantes, repartidos por bairros, sendo os de um trato ou ofício impedidos de negociar ou laborar em outra coisa, sob pena de trinta açoites. Assim, dos criadores de porcos há os que só os podem vender vivos e inteiros; os que apenas negoceiam em leitões; os açougueiros com ofício de matá-los e vendê-los aos arráteis; outros encarregues da chacina e da venda das carnes de fumo, ou os que tratam dos miúdos de tripas, banhas, peles, sangue, fressuras.
Além das artes e ofícios, a cidade flutuante possui todas as comodidades do campo, visto haver barcaças com hortas ou quintais onde criam legumes e frutos. Há bairros de panouras, fechadas de popa e de proa, com redes de canas como capoeiras de três e quatro sobrados, cada um da altura de dois palmos, cheias de galinhas e adens; outras com currais de porcos e de gozos – uns cães pequenos cuja carne os chins muito apreciam quando cozida com cascas de laranja, para lhe secar a humidade e a fazer tesa, quitando-lhe o mau cheiro; outros com grandes tinas de água com peixe vivo, preso com um junco pelos narizes, para o comprador lhe poder ver o tamanho sem o apolegar nem sujar, assim como pipos com cágados, rãs, lontras, cobras, enguias, caracóis e lagartos.
Através deste labirinto de canais, navegava em grande azáfama a vender os seus produtos, uma infinidade de pequenos balões, guedéis e manchuas, que servem de casa aos desprezados pescadores e mercadores tanka, a quem os chins chamam famílias de vermes, os shui shangren ou gente que vive na água. Cruzam-se constantemente com as embarcações militares, muito bem armadas, comandadas por trinta capitães que, com as suas quadrilhas de upos, vigiam e patrulham por fora e por dentro a cidade flutuante, anunciando a sua passagem em altos brados, para desencorajarem os ladrões.
De noite as ruas de barcos são iluminadas por lanternas postas nos mastros e fechadas com cordas que se atravessam de umas às outras, para que ninguém passe depois do toque do sino a recolher; o espectáculo das incontáveis luminárias acesas no rio é a mais formosa vista que se pode imaginar.
Sendo os chins, tanto ricos como pobres, grandes amantes do prazer, nesta urbe fluvial não pode deixar de haver jardins de desenfadamento, casas de chá, estalagens, tabernas, barcaças de malcozinhado e. casas de alegria ou campos de flores, o poético nome dado na terra aos bordéis e lupanares, que proliferam no seus bairros próprios, nas ruelas de fumo (as das flores de mais baixa condição e menor valia), anunciados pelas lanternas vermelhas dos barcos pintados de cores festivas, pelo som de música e de alegres canções, pela presença das arrebicadas moças que nos conveses deixam antever o pescoço nu e parte do seio, procurando atrair uma borboleta ao coração da sua flor ou, numa versão menos poética, caçar uma lebre, com promessas de bons serviços para todos os gostos e todas as bolsas. O bairro agita-se com o vaivém da clientela masculina e os portugueses mergulham nele, tão inebriados como se tivessem passado o dia a beber.
– Não preguei olho toda a noite, tenho as pernas a tremer – protesta Jorge, em tom sério, depois de percorrida a primeira rua. – Credes que hei mister da mezinha de corno de veado?
Vendo passar o estranho bando de foliões, os alcaiotes e as alcovetas convidam com voz e modos comedidos:
– Abri os vossos corações, ilustres visitantes! Sacudi a tristeza, com a música e as cantigas das nossas tangedoras.
– Nobres e excelentes viajantes, vinde tomar um banho e passar a noite na nossa pousada. Vereis as melhores bailadeiras de Pequim.
– Temos vinhos e comida da melhor qualidade, os pêssegos e as ameixas mais saborosas do bairro, veneráveis e insignes estrangeiros – aliciava um turgimão, acentuando as palavras com esgares maliciosos e os portugueses percebem que, ao nomear os frutos, o rasca-piolhos se refere às naturas das mulheres.
Entram de roldão no barco, berrando pelos três línguas que se deixam ficar para trás, vendo o espanto da clientela chim, o susto das moças e a cara fechada do rufia encarregue da vigilância, mais parecendo um corsário wokou do que o estalajadeiro que diz ser. A barcaça é espaçosa, no tombadilho há cadeiras e mesas onde os frequentadores comem e bebem, acompanhados pelas moças, que disfarçam com sorrisos o receio que lhes causam os folangji peludos como macacos, de olhos esbugalhados e grandes narizes.