Como Fernão temia, os seis companheiros já vêm bem bebidos e querem entrar sem mais delongas na coberta inferior onde se acham os aposentos reservados às flores de lótus, no que são contrariados firmemente pelas moças, embora sorridentes e cheias de meiguice, que os puxam para as mesas. Alguma prata entregue à matrona que governa o gineceu e acorrera ao estrupido, abranda-lhes as vontades e o grupo mergulha no fojo acobertado do alcouce.
O espaço está dividido por tabiques em estreitos compartimentos iluminados por candeias de vidro, um com um canapé, os demais com esteiras e travesseiros; completam o mobiliário de cada estância, uma bacia com água e toalhas sobre um banco, uma cadeira para o visitante, uma mesa com perfumes, um pote de geleia ágar-ágar, incenso a arder num pequeno dragão de porcelana e um recipiente de vinho voluptuoso posto num aquecedor. As cortinas que vedam os cubículos permanecem abertas, deixando ver alguns deles ocupados por mulheres tankas, mais trigueiras do que as chins e sem os pés enfaixados.
Das paredes pendem papéis com símbolos de Boa Fortuna e gravuras representando as quatro posições fundamentais com as dezenas de variantes da arte de amar, com os respectivos nomes, como um tratado de medicina. O barco estremece com a surriada dos portugueses, as moças erguem-se assustadas das cadeiras e do chão, logo sossegadas pela matrona, que lhes faz sinal para que se acerquem, ordenando-lhes que preparem o chá.
– Não queremos chá, queremos vinho – berra Álvaro de Melo. – Mǐ jiǔ, báijiǔ, entendes?
Vinho de arroz e aguardente foram as primeiras palavras em língua chim aprendidas pelos portugueses e alguns do bando não tinham ido além destas; no entanto, a mulher faz um aceno de compreensão, dando novas ordens a duas moças que se afadigam em torno dos aquecedores do vinho. As restantes procuram insinuar-se no grupo dos folangji que parecem mais interessados nas imagens do que nas suas pessoas.
– As gravuras têm letreiros. Onde estão os nossos línguas? – clama Valentim.
– Vinde cá fazer-nos o traslado – insiste Pereira, de olhos esbugalhados.
– Não é preciso – protesta Fernão a rir. – Tira-se bem pelo debuxo!
Contudo, para manter a boa disposição do grupo, os três amigos lêem, ajudando-se uns aos outros na tradução das legendas:
– Os macacos lutadores: a haste de jade apunhala o ratinho perfumado; o salto mortal dos dragões: a haste entra morta e sai viva e vigorosa; duas tartarugas cavalgando; a fénix segurando o pinto.
– Ora vede se não é uma mulher grande com um homem pequeno! Mesmo a calhar para vossa mercê, Joaquim Pereira – achincalha Jorge que não perde ocasião de espicaçar o quezilento.
As moças, embora sem perceberem o que os folangji dizem, captam-lhes a excitação e as ânsias, ajudam com gestos maliciosos à tradução, rindo com eles e aplaudindo. Fernão retoma a leitura, para atalhar a resposta de Pereira com a consequente briga:
– Estas dizem, dois patos bravos voando para trás e o coelho lambendo o pêlo, não percebo o que vem a seguir, mas vê-se bem do que tratam; e aqui, a passada dos tigres: o homem avança e recua, oito alancos, cinco vezes.
– Como é essa? Estais a trasladar o que aí diz ou a inventar patranhas?
– Os peixes roçando as escamas – retoma Borralho –, o salto dos cavalos selvagens; esta não sei dizer; as seguintes, dois grous entrelaçando os pescoços e a aranha apanhada na sua própria rede.
– São duas mulheres, e uma delas está pendurada em cordas como num balouço – berra Pereira, apontando para a gravura, vermelho de paixão. – Eu quero essa.
– Não vos enxergais? – brada Álvaro de Melo, com um risada de desdém. – Se nem para uma chegais. Deixai-as para um homem a sério. como eu.
– Filho da puta! Sodomita! Paneleiro!
Rebentara a tormenta no Barco das Flores! Trovejam os palavrões e ondas de maldições rumorejam nas bocas retorcidas pelo ódio; os punhais escondidos nas roupas faiscam nas mãos dos seis homens, ferindo o ar de raios e coriscos, rasgando roupas e carnes; o barco balança como em mar alto sob o choque dos corpos engalfinhados.
– Pesar do Diabo! Rascões! Encomendo-os a Satanás! – murmuram Fernão, Zeimoto e Borralho, enquanto procuram esgueirar-se para fora do coberto, fazendo-se desentendidos, mas já não vão a tempo de escapar. O tumulto da rixa e os gritos espavoridos das mulheres fazem surgir, como por obra de feitiço, uma dúzia de rufiões, empunhando facalhões da feição de sabres ou trinchantes de esfandangar porcos: Fernão e Borralho são levantados no ar e lançados borda fora para o rio, com grande gáudio e aplausos dos clientes, das peónias e flores de lótus nos barcos próximos; Zeimoto é empurrado de novo para dentro e atirado para cima dos companheiros em luta.
Os dois náufragos, lutando para se manterem à tona e subirem para a embarcação, não testemunham as derradeiras peripécias da contenda, contudo não lhes é difícil adivinhar o resultado, quando três bargantes os pescam do rio e levam de arrastão para dentro do reservado. Devem a sua salvação à alcoveta que os indicara ao rufião de facha de corsário como os folangji que melhor falavam a língua.
Só desandâncias é que m’acontecem: a navio roto todos os ventos são contrários! lastima-se Fernão, ao lado de Cristóvão, a escorrer água no sobrado e a tremer como varas verdes, menos do frio do que das lâminas dos matantes que haviam vencido a resistência dos estrangeiros e os mantinham no chão à sua mercê. O acobertado parece ter sido assolado por um tufão, com mesas e cadeiras partidas, vidros estilhaçados, cortinas e panos rasgados, travesseiros esventrados, mostrando as suas entranhas de penugem.
– O barco patrulha não tardará a passar por aqui – diz-lhes o chefe da súcia numa voz fria, ameaçadora. – Se vos entregar, não escapareis aos trinta açoites e tão cedo não saíreis do tronco, pelo menos até pagardes o que me deveis. Destruístes-nos o barco, assustastes as moças e fizestes fugir os nossos clientes, causando-nos um enorme prejuízo. E, se eu não receber já a paga, não saíreis daqui inteiros.
Faz uma pausa, para que pesem as suas palavras e prossegue:
– Por outro lado, atendendo a que sois folangji e desconheceis os nossos usos, se me entregardes as vossas bolsas, deixar-vos-ei ir em boa hora, sem vos fazer qualquer dano. Falai com os vossos companheiros e decidi depressa, antes que passe o barco da patrulha.
Não há contradições nem argumentos entre os portugueses, obrigados pela necessidade a fazer tréguas: estão nas mãos dos facínoras e não podem arriscar-se a ser presos, pois teriam a pena agravada. Resignados, entregam as bolsas ao patrão da barca que, sem dizer palavra, as despeja numa balança de pesar prata e parece satisfeito, despedindo-os com um aceno.
Compõem as vestes rasgadas o melhor que podem e, fazendo apelo à sua dignidade espezinhada, de cabeça erguida, ombros lançados para trás, peito para fora, impantes de sobranceria, abandonam o barco das flores mais pobres e famintos do que quando penavam no tronco de Gofanjauserca.
119 Peregrinação, capítulos XCVIII e XCIX.
XIII
Quem ama mulher casada anda com a vida emprestada
(português)
Do Livro de Linhagens dos Freire d’Andrade:
Manuel Freire, filho 2.º de Nuno Freire e irmão de Rui Freire, o do Olho, foi casado com Grimanesa de Mello, filha de Álvaro Nogueira de Brito, de quem houve Dona Eirea Freire, mulher de Lopo de Brito, e Dona Isabel Freire, mulher de Dom João de Fárão, filho de Dom Sancho de Noronha, 2.º Conde d’Odemira, e outra freira, e bastardos, a Francisco Freire e Rui Freire d’Andrade. Este Manuel Freire é o que mataram à Porta d’Alfofa, em Lisboa, pela filha do regedor Aires da Silva e mulher de Francisco de Faria, com quem dizem que tinha amores. E com ele ia Fernão Peres d’Andrada, que escapou por pés, com o derrubarem primeiro, com ser muito bom cavaleiro e ter bons feitos na Índia120.