Nesse dia, nenhum sinal funesto pressagiara desgraça, muito pelo contrário, depois de acompanharem o chaem na sua ronda pela muralha, os nove degredados desenfadavam-se comendo e ouvindo as canções de Gaspar e dos alabardeiros chins, recebidas de parte a parte com muitos aplausos e assobios de apreço. A voz do gordo Pei tremula de emoção com os versos de uma balada que remonta aos primeiros tempos da construção da Grande Muralha:
Tártaros agrilhoados!
Tártaros agrilhoados!
As orelhas furadas,
As caras pisadas,
Às terras dos Han conduzidos.
O Filho do Céu celeste
Condoeu-se da sua sorte
E não lhes deu a morte.
Mandou-os para Sudeste
Aos reinos de Wo e Yueh.
O canto é abafado pelo som da briga que estala entre Joaquim Pereira e Álvaro de Melo, os mais arredados do grupo:
– Os Fonsecas sempre foram do partido d’el-rei que lhes deu grande moradia em suas casas, melhor que a dos Madureiras.
– De modo nenhum! Os Madureiras são fidalgos mais antigos e de melhor geração do que os Fonseca. Estais a rir de quê?
– Dessa atoarda que dizeis! Os Fonsecas remontam ao conde D. Pedro, juntamente com os Soveral.
As vozes elevam-se desabridas, interrompendo a canção do eunuco e o coro dos companheiros, ateando-se como fogo em palha e propagando-se a toda a companhia num incêndio impossível de conter, de funestas consequências.
– Mentis como quem sois! – berra Pereira em sanha. – Os Madureiras sempre tiveram precedência sobre os Fonsecas. Como ousais falar do que desconheceis, bargante malparido?
– Quem sois vós, para dizer tal cousa? – vocifera Melo. – Não passais de um vilão, com fumos de nobreza! Vede com quem falais, cabrão sem nome nem vintém! Quem sois.
– E vós quem sois? Sim, quem sois? Um filho de puta, sem eira nem beira, que anda às sopas dos fidalgos e.
Não termina a frase, porque o seu interlocutor lhe assenta uma estrondosa bofetada que lhe faz saltar o sangue pelas ventas. Pereira tem uma faca na mão e, antes que o possam agarrar, dá uma cutilada no rosto do agressor, arrancando-lhe metade da face. Cego de cólera e dor, Melo desfere-lhe com a alabarda um golpe, que quis mortal, mas por milagre falha a cabeça, decepa-lhe o braço esquerdo, rente ao cotovelo.
Os sete companheiros, que acorreram ao rumor da altercação com o intento de os separar, vêm por sua vez a tomar partido e a travar-se de razões uns com os outros, passando logo dos fideputa, cabrões e quejandos mimos, às cutiladas com tamanha violência e ódio que, em menos de um credo, cinco foram feridos de gravíssimos golpes.
O alarido atrai não só os alabardeiros de serviço, como o chaem em pessoa, com os anchacis da justiça e outros oficiais, crendo que os tártaros assaltavam a Grande Muralha. A sangrenta cena deixa-os tão escandalizados e irados que, sem sequer os ouvir, o mandarim manda que os nove desordeiros, logo que recebam alta do hospital, sejam postos a ferros numa masmorra subterrânea, com um galardão de trinta açoites a cada um, que ainda os sangram mais do que os golpes recebidos durante a zacapela124.
Lazeraram no calabouço quarenta e seis dias em grande sofrimento, vendo como por sua própria culpa se acabara a vida folgada, a esperança de salvação e do regresso ao reino. Estava na massa do sangue dos portugueses essa danosa invejice ao vizinho, agravada da afeição aos seus próprios pareceres de que nada nem ninguém logram afastá-los, nem sequer o risco de tudo perderem naquele degredo em que o que mais relevava era a concórdia do grupo.
O libelo que o lauteaa acusador lavrou dos crimes, comprovados por dezasseis testemunhas, não podia ser mais gravoso: os réus eram comparados a demónios, merecedores do degredo para os lugares habitados apenas por animais ferozes. O julgamento do anchasi da justiça no Pitau Calidão ou tribunal de Quansy decorreu de modo semelhante ao de Nanquim, sendo os réus premiados com novo castigo de trinta açoites que os fizeram amaldiçoar em altos gritos a todos os Fonsecas e Madureiras, mais às putas que os pariram e aos cabrões que os engendraram, por serem a causa da sua miséria.
Levaram-nos para o tronco onde, aliviados dos ferros, acabaram de sarar das feridas, embora sofrendo muita fome e sede, por não terem nada de seu com que pudessem peitar os tronqueiros ou os outros presos. Dois meses mais tarde, quando já só esperavam a morte, viram-se livres da prisão, no dia de Quingming – o Claro e Brilhante, ou do Varrer dos Túmulos –, o centésimo quarto dia depois do solstício de Inverno, cinco de Abril, em que os chins honram os mortos com muitas esmolas aos seus pagodes.
Por serem gente mísera e sem polícia, fan jen de uma nação tão remota, que até então nunca se tivera notícia dela, dos seus usos e da língua que falavam, o chaem reviu a sentença, declarou que os açoites eram castigo suficiente para os seus crimes, mandou-os soltar em nome do Filho do Céu. Pesara na balança da justiça, mais do que a santidade do dia ou o coração misericordioso do lauteaa, a míngua de degredados para trabalhar nas obras da Muralha, quando os espias davam o alarme de movimentos suspeitos nas terras dos tártaros, junto à raia de Quansy, como se preparassem um ataque.
– Já não saíreis daqui no termo dos oito meses da vossa anterior sentença – anunciou-lhes o chaem –, por não serdes merecedores da liberdade. Ficareis cativos para sempre ou até que o Tutão decida soltar-vos. E aquele que de vós faça tumulto nos bazares, se amotine ou tire sangue a alguém, será açoutado até à morte.
Os presos escutaram a sentença, chorando de arrependimento, sem coragem de se encararem ou incapazes de buscar conforto na amizade dos companheiros, cada um recriminando os outros pelo seu infortúnio, num mórbido desespero apenas mitigado pela fortuna de terem escapado mais uma vez à morte. Condenados a uma existência miserável, a que quase não podem chamar vida, haviam passado já por tanto sofrimento e descido tão baixo na humana condição que, como miseráveis insectos a rastejar na terra, se ferravam tenazmente ao instinto de sobreviver.
Presos de três em três, foram levados do tronco para umas ferrarias onde, durante meses, sofreram assaz de trabalhos e necessidades, labutando com as roupas em farrapos, sem um catre onde dormir, comidos de piolhos e mortos de fome. Sobreveio-lhes uma moléstia que abria com uma febre maligna, pestilenta e, cinco ou seis dias depois, tomava-os um sono tão pesado que nem os gritos dos companheiros que os sacudiam conseguiam despertá-los. Só a muito custo abriam as capelas dos olhos, cerrando-as de imediato, jazendo inertes, de costas no chão, numa pesada sonolência e com um estertor semelhante ao da morte. Outras vezes, eram acometidos por uns frenesis que lhes espantavam o sono e, nessas longas vigílias, se lhes falavam, abriam os olhos e respondiam como se estivessem fora do siso.
A enfermidade assemelhava-se ao mal de modorra e Fernão foi o último a apanhá-la. Cuidou dos companheiros, socorrendo-se do que aprendera com os barbeiros e os boticários das naus da Índia e, sobretudo, com Garcia de Orta, o físico do capitão-mor que ele conhecera em Goa. Recordava-se bem do ano de mil quinhentos e vinte e um quando, ainda menino de dez ou onze anos, fora servir para Lisboa onde lavrava uma epidemia da terrível doença que matara muita gente, incluindo el-rei D. Manuel. Se, apesar de ser quem era e de ter recebido os cuidados dos Doutores João Rodrigues de Castelo Branco125 e Garcia Pereira, dois dos melhores físicos do mundo, o rei de Portugal acabara por morrer, só um milagre salvaria do mesmo destino os nove condenados que, já antes da doença, mal se aguentavam nas pernas. Iriam deixar os seus ossos sem sepultura cristã, na terra dos chins.
Fosse por milagre dos Céus ou graças ao engenho e arte do improvisado físico, que soube reconhecer o arbusto do pau-da-china e usou a raiz cozida contra a paralisia e a água da cozedura para suadouros no combate à febre, nenhum deles morreu. Por ser o mal contagioso, os chins soltaram-nos das prisões e, como já estavam livres da morte, apesar de muito fracos, mandaram-nos pedir esmola para se sustentarem.