121 Corsários do mar da China.
122 Excerto de O Prisioneiro de Pei Chu-I (772-846).
123 A Grande Muralha tem mais de cinco mil quilómetros de comprimento. O troço Badaling tem quase oito metros de altura e cinco metros de largura; o troço de Jinshanling tem de cinco a oito metros de altura e seis metros de espessura.
124 Desordem, confusão.
125 Amatus Lusitanus (1511-1568) – um dos médicos portugueses mais célebres do Renascimento. Era cristão-novo e teve de fugir de Portugal por causa da Inquisição.
XV
Quem não sabe suportar contrariedade nunca terá acesso às coisas grandiosas
(chinês)
Carta escrita ao capitão da armada que ali foi negociar a libertação dos sobreviventes da embaixada:
Sejam, senhor, estas cartas mostradas aos senhores capitães-mores, não se encubram, senhor, que se Jorge Álvares amostrara as cartas que levara e de nós souberam, eu confio que não estivéramos aqui nesta cadeia, ou vivos ou mortos. Em dois anos ou o Senhor Governador houvera de mandar, ou de Malaca se houvera de ordenar cousa por onde nos daqui tirarem.
De uma maneira ou doutra que, senhor, vierem, tanto que [a] esse porto chegarem, logo façam os jurubaças126 as cartas, sobre nos não mandem, senhor, matar, pedindo-nos mui altamente que a isso vêm. Assi se causa for vir cousa grande, assi se ponha nesse porto a nos pedir muito rijo. Que estes mandarins de nós, senhor, têm o receio, que sabemos a terra; esse é o respeito porque nos não soltam e nos têm nesta cadeia, sendo a mais forte que há nesta cidade.
Não posso, Senhor, escrever mais largo, porque tenho a mão doente, de chagas que me arrebentaram, e por não ser mais necessário, que Cristóvão Vieira nunca deixa de escrever todalas mais cousas
Servidor de sua mercê
Vasco Calvo
Feita em Outubro, nesta cadeia do Anchaci, no ano de 1536.
Em Quansy os nove condenados não duvidavam de que a sentença de morte seria cumprida, se algum deles perturbasse a paz ou desse azo ao mais pequeno conflito. Enfraquecidos pela doença e a fome, a necessidade forçou-os a fazerem tréguas nos seus ódios, com o juramento solene de viverem daí por diante em concórdia e cristãmente, pois sozinhos não teriam salvação. Revezar-se-iam cada mês no cargo de chefe ou maioral, a quem todos os outros teriam de obedecer, sem nunca poderem escusar-se às suas ordens, sob pena de serem expulsos do grupo e viverem homiziados. Para o juramento ter mais força e ninguém poder dizer que não jurara, as regras foram escritas e assinadas por todos, como um regimento para sua governança, tendo o bando passado a viver num casebre abandonado em fraterna harmonia.
– Assi não nos governamos, vamos morrer à míngua! – desabafa Borralho, tirado às sortes como maioral do primeiro mês. – Ninguém nos dá esmola, seja por receio, seja pela muita esterilidade desta terra. Somos nove, não podemos andar todos juntos a pedir.
– Parecemos um bando de salteadores de estradas, fazemos-lhes medo – concorda Vicente. – As mulheres viram-nos as costas ou fecham as portas, sem nos darem um ceitil.
– Julgo que será de maior proveito se nos dividirmos em pares, cada parelha para sua tarefa, a começar desde já. Fernão e Álvaro irão buscar água, enquanto o Zeimoto faz o comer com o que puder arranjar. Tu, Gaspar, como os chins gostam de te ouvir, vai tanger pela cidade com o Joaquim que, por ser maneta, talvez logre maior esmola. Os restantes venham comigo ao mato catar lenha para nosso gasto e para vender.
Fora uma boa estratégia que não tardara a dar frutos, trazendo alguma melhoria à vida dos degredados e paz ao grupo que amordaçara ou adiara os antigos ressentimentos. Na semana seguinte, a tarefa de apanhar lenha coube a Fernão e Gaspar que se dirigiram para a porta da cidade de acesso à floresta, cruzando-se na rua principal com um cortejo fúnebre de grande pompa e fanfarra de muitos instrumentos. Afastam-se respeitosamente para o deixarem passar, mas o mestre da música reconhece o folangji tangedor e agarra-o por um braço.
– Rogo-te que cantes o mais alto que puderes – diz-lhe, autoritário, metendo-lhe uma viola chim na mão –, para que te ouça este nosso defunto que vai muito triste com a saudade da mulher e dos filhos que muito amava.
Fernão não ousa fazer sequer um gesto para impedir que os festivos carpideiros levem o companheiro a tanger e a cantar, até ao sítio onde vão cremar o morto. Ainda hesita em acompanhá-los, mas como estão muito faltos de torgas para fazer lume, segue para o bosque, onde junta um feixe de lenha tão grande quanto a fraqueza do corpo lhe permite levar às costas.
Regressa ajoujado do peso, com o suor a escorrer-lhe pelo rosto e o corpo, quando ouve alguém escarrar à entrada de uma azinhaga do mato, como se quisesse chamar-lhe a atenção. Olha em sobressalto para o velho que parece esperá-lo e lhe acena com a mão.
– Chamas-me? – pergunta Fernão em língua chim e o velho acena-lhe de novo.
Apesar de estar vestido como homem abastado, com roupas de damasco preto forradas de peles de cordeiro branco, o português não lhe distingue as feições e receia que aquela cena seja negaça de ladrões para lhe tomarem a lenha, o único bem que tem consigo e lhes pode aguçar o apetite. A experiência ensinara-o que aquela gente só não roubava ou enganava quando não lhe davam ocasião para isso.
Pousa o feixe no chão, agarra no varapau que sempre traz consigo para caminhar ou se defender em caso de necessidade e avança em passo decidido para o velho que, sem parar de lhe acenar para que o siga, se mete apressadamente para dentro da azinhaga. Convencido de que o homem é ladrão e se prepara para o assaltar, Fernão arrepia caminho a toda a pressa, põe o feixe às costas e trata de fugir para a estrada de acesso à cidade, onde há sempre gente.
Ouvindo o homem escarrar muito mais alto, olha para trás, no temor de ser perseguido e caçado pelas costas, mas estaca de chofre, deixando tombar o feixe, espantado com o que vê. O velho, de joelhos, segurava nas mãos erguidas uma cruz de prata de um palmo de comprimento, fazendo-lhe ao mesmo tempo trejeitos piedosos e acenos para que se acerque. Ainda hesitante, agarra no cajado e segue-o quando ele entra de novo na azinhaga, parando uns passos mais à frente à sua espera.
Fernão avança até ficar diante dele e vê com surpresa que o homem não é chim. Dá um salto para trás quando ele se lança novamente de joelhos, com as lágrimas a correrem-lhe em fio dos olhos, dizendo por entre soluços:
– Louvado seja Jesus Cristo porque, ao cabo de tanto tempo e em tamanho desterro, permitiu que os meus olhos vissem um cristão de Portugal!
Fernão julga perder o siso de puro terror, ao ouvir a assombração – que outra coisa não pode ser aquela criatura –, a falar em português e brada-lhe com um grito esganiçado, enquanto se persigna enfrenesiado:
– Eu te esconjuro, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me digas quem és!
– Sou Vasco Calvo, irmão meu, para te servir – apresenta-se o homem, dominando o choro e fazendo um gesto apaziguador. – Sou natural de Alcochete, de onde tomei a alcunha por que todos os portugueses me conheciam na Índia. Sei que Inês de Leiria te falou de mim, pois escreveu-me sobre os cativos portugueses que recebera em sua casa quando iam a caminho de Pequim.
Fala com uma alegria ansiosa, como se temesse ver o seu interlocutor desfazer-se em fumo ante os seus olhos. Fernão, já recomposto do susto, ajuda-o a erguer-se, misturando as suas lágrimas às dele.
– Por nossos pecados, porque somos como alimárias selvagens, fizemos zacapela, perdemos o posto de alabardeiros e a esperança de regressar a Malaca ou a Goa. Estivemos muito tempo em ferros e ainda andamos vigiados.
Vasco Calvo acena, como quem já ouviu falar daquele mau sucesso, retomando o seu relato: