– Achei que, se não vos matassem em Pequim, acabaríeis aqui, na construção da Muralha. Vinde comigo, em minha casa poderemos praticar à nossa guisa, ao abrigo dos espias.
– Hoje não vos posso acompanhar porque tenho de levar a lenha aos meus companheiros – escusa-se Fernão. – Mas sentai-vos à minha beira mais uns instantes e contai-me como haveis conhecido Tomé Pires, que eu morro por saber.
– Já passaram mais de vinte anos. – aquiesce o velho. – Eu não fiz parte da armada de Fernão Peres de Andrada que trouxe Tomé Pires, só vim quatro anos mais tarde com o meu irmão Diogo Calvo para fazer veniaga, já o embaixador estava preso com o seu séquito em Cantão. A embaixada começara com bons auspícios, mas acabara em desastre, devido aos desmandos que um dos nossos capitães fez em Cantão.
– O irmão do próprio Fernão de Andrada, segundo ouvi dizer!
– Simão de Andrada acabou por danar o negócio que o irmão e o embaixador tinham deixado bem concertado.
– Que fez ele?
Embora estes sucessos se tivessem passado no tempo em que ainda vivia em Lisboa, mal chegara à Índia, Fernão ouvira as mais desvairadas histórias sobre a malograda embaixada, as quais não passavam de atoardas porque ninguém regressara vivo para contar. Por isso, parece-lhe um prodígio inacreditável topar ali com o último sobrevivente desse trágico sucesso.
– Logo que tomou Malaca, em mil quinhentos e onze, Afonso de Albuquerque enviou cartas ao imperador Zhengde, pelos chins que estavam no porto e, três anos mais tarde, o capitão Jorge Álvares chantou um padrão na ilha de Tamão para comemorar o feito de ser o primeiro europeu a pôr os pés na terra dos chins. Foi lá que, no ano dezassete, aportou a frota de Fernão de Andrada com a nossa embaixada e por pouco não causou um conflito diplomático.
– Como assim? Vossa mercê não disse que o capitão soubera fazer amizade com os chins?
– Foi sem querer. Como a armada portuguesa trazia a primeira embaixada de um reino da Europa a esta terra, os seus oito navios entraram na baía de Tamão com todas as velas desfraldadas, muita festa de bandeiras e grande estrondo de bombardas em saudação. escandalizando os chins. O Tutão que patrulhava a costa com a sua própria armada, tomou aquelas salvas por um acto de guerra e preparou-se para o combate, perseguindo a nossa frota com alguns tiros.
– Os nossos não sabiam que nas costas da China só são permitidos estandartes chins e qualquer disparo é tomado como um acto de guerra? As naus sofreram danos?
– Não, porque o poder de fogo dos chins era fraco. Fernão de Andrada não ripostou e fez tocar as suas fanfarras em som de festa. Por sorte, Duarte Coelho, que chegara a Tamão um mês antes com a sua nau e ficara a ajudar a cidade a defender-se dos cossairos, mandou recado ao almirante chim, de que a frota portuguesa vinha em missão de paz. Fernão Peres, com bons modos e presentes, conseguiu vencer a desconfiança dos mandarins. Em Outubro, antes de regressar ao reino, foi levar o embaixador a Cantão onde Tomé Pires ficou a aguardar a autorização do imperador para se dirigir à corte de Pequim.
Fernão solta uma risada amarga:
– Atendendo ao vagar com que estas cousas de embaixadas e requerimentos correm por cá, muito teria de esperar!
– Fernão de Andrada usou sempre de muita cortesia com os chins e, antes de partir, lançou um pregão na ilha para saber se alguém tinha queixa dos seus homens, pelo que o tiveram em grande estima e os primeiros relatórios dos mandarins foram muito a nosso favor. No ano seguinte, o irmão só fez desmandos, causando tantos ódios e malquerença, que os Tutões nos fecharam os portos, proibindo o comércio connosco.
– Nestes últimos anos já nos consentiam em Cantão. Que dianho fez Simão Peres de tão grave?
– Ele chegou a Tamão em Abril de dezanove, para recolher o embaixador, julgando que concluíra a sua missão, por isso, ficou em sanha ao ver que Tomé Pires não fora sequer chamado à presença do imperador. Como desconhecia os usos dos chins, tomou a demora por desprezo e ofensa imperdoável ao rei D. Manuel e a todos os portugueses. Cheio de prosápia, começou a construir uma feitoria sem autorização, mandou chicotear o mandarim que se opôs e ousou enforcar um marinheiro em terra, quando só o imperador pode decretar a pena de morte.
– Cometeu os maiores crimes que um estrangeiro pode fazer nesta nação! Ninguém o avisou do perigo?
– Ele não tomava conselho de ninguém! Tomé Pires já tinha partido com a sua comitiva para Pequim, no dia vinte e três de Janeiro de mil quinhentos e vinte, portanto antes desses sucessos. O Filho do Céu andava em visita pelo reino e mandara-o ir à sua presença, em Nanquim.
– Ele viu o imperador?
– O embaixador chegou a Nanquim, em Maio, Zhengde recebeu-o com festas e banquetes, enviando-o de seguida para Pequim com a promessa de despacho. Ora, o imperador só voltou para a capital em Fevereiro do ano seguinte quando a embaixada já estava comprometida porque Zhengde tinha recebido cartas dos lauteaas de Cantão e uma do embaixador d’el-rei de Malaca, com muitas queixas contra os portugueses. Por último, tudo se complicou com a sua morte e a subida ao trono de Jiajing que agora governa. Então, já eu fora feito cativo pelos chins, quando os seus juncos de guerra nos começaram a dar caça, mas, como os prisioneiros portugueses só podiam ser condenados à morte pelo rei, acabei também por ser enviado para Pequim e posto no mesmo tronco do embaixador. Foi aí que o vi pela primeira vez.
A tarde declinava, contudo Fernão mal se dá conta da passagem do tempo, preso das palavras de Calvo, de todo esquecido do feixe de lenha ou dos seus companheiros de infortúnio. O homem não fizera parte da embaixada, mas ouvira da boca do próprio embaixador o relato da sua odisseia.
– Todas as tentativas do governador para vos libertar foram vãs – diz-lhe à laia de consolo. – Os mandarins não recebiam os nossos capitães e a armada chim perseguia-nos quer nos mares quer em terra como se fôssemos cossairos.
Vasco Calvo interrompe-o, com amargo ressentimento:
– Muitos dos nossos cativos foram justiçados com mortes terríveis e os sobreviventes desesperaram da vida, encarcerados anos a fio nos troncos. Sabíamos que só seríamos libertados se a nossa armada atacasse Cantão e se assenhoreasse de toda província. Cristóvão Vieira chegou a escrever ao capitão-mor um rascunho da carta que ele deveria enviar aos mandarins, quando a nossa armada entrasse no estuário do rio das Pérolas, com o ultimato para a nossa libertação. Com risco da minha vida, também eu escrevi cartas ao capitão-mor e ao governador, com um plano bem esmiuçado para conquistarem a cidade e província de Cantão, sem grande trabalho e pouco custo, dizendo-lhes como este povo é fraco na guerra e se fecha em casa quando há perigo, obedecendo a quem mais pode.
– Quanto a isso, tendes razão! Os nossos talvez até fossem recebidos de braços abertos pelos milhares de presos dos troncos e pelos que andam a monte por se amotinarem contra os mandarins. Em todos estes anos não vos veio nenhuma resposta do governador da Índia ou d’el-rei?
– Ninguém fez caso de nós. De nada valeram as nossas cartas e o perigo em que nos pusemos para as escrever, pois até os nossos moços para terem o favor dos tronqueiros nos denunciavam.
A sua voz ressuma de amargor e as lágrimas brilham-lhe de novo nos olhos. A tarde chegava ao fim e Fernão despede-se.
– Os meus companheiros decerto folgariam muito em vos ver e ouvir. Como e onde nos poderemos reunir sem perigo? De dia andamos mais à nossa guisa pela cidade ou pelo campo a ganhar o nosso sustento.
– Vinde a minha casa. Vivo modestamente, mas sereis recebidos como família e festejados com uma boa ceia. Vinde todos comer comigo amanhã, para contarmos as nossas histórias, pois também quero conhecer o rol das vossas desventuras.
Dá-lhe as indicações da morada e ajuda-o a pôr o feixe às costas, separando-se à saída do bosque para não levantarem suspeitas, porque apesar de terem decorrido vinte anos, Vasco Calvo ainda não deixara de estar sob suspeita e de gozar de uma liberdade vigiada.