(Da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, dirigida à Católica Real Majestade del Rey dom Filipe o III deste nome nosso Senhor, capítulo I)
Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor
(africano)
Carta d’el-rei D. Manuel I ao Papa Leão X:
Com a ajuda de Deus, descobrimos aquele poderosíssimo chefe dos índios e etíopes cristãos, o Preste João, senhor da Província da Abissínia. Nossos antepassados esforçaram-se por descobrir novas terras, mais para benefício da cristandade do que em proveito próprio; nós, seguindo seus passos, fomos melhor afortunados do que eles e descobrimos a Índia e muitas outras províncias. A nós coube unirmo-nos com este grande e poderoso príncipe, que muito desejava nossa amizade e aliança e há alguns anos enviou um embaixador com cartas e presentes e um bocado do lenho da verdadeira cruz.
Finalmente a nossa armada chegou agora às praias e portos do Preste João, e depois de ter sabido alguma cousa daquela gente e distrito, tanto quanto o permitia a brevidade do tempo, e assinar um tratado, e enviar ao Preste João seu próprio embaixador com alguns dos nossos homens, para investigar devidamente os costumes, religião e outros particulares da província.
Lisboa, 8 de Maio de 1521
Dezasseis anos tinham passado sobre a carta jubilosa acima transcrita, que el-rei D. Manuel enviara ao Papa Leão X com a notícia da descoberta do reino do Preste João das Índias, pouco tempo antes da morte de ambos e da chegada a Lisboa de Fernão Mendes Pinto, aos dez anos de idade. Se, então, alguém lhe tivesse dito que haveria de visitar o encoberto imperador cristão da Abássia, tomá-lo-ia como chiste ou zombaria, por lhe parecer coisa impossível, contudo, a realidade que se desdobra ante os seus olhos confirma-o.
Fernão sente nas costas a dureza redonda do mastro onde se apoiou, em busca da sombra protectora da vela, para contemplar à sua guisa Daqhano, o porto de Arquico, no mar Roxo, que se acerca velozmente de encontro ao focinho da Silveira. Com a fusta1 a correr sobre as ondas como um corcel em campo aberto, reconhece quão grande era a sua ignorância das coisas do Oriente que, ao ver pela primeira vez aquele tipo de embarcação à sua chegada a Diu, o levara a desdenhá-la por lhe parecer fraca e perigosa.
Afinal ficara a dever a vida à sua ligeireza e boa navegação durante o ataque do navio mouro, cerca da ilha de Maçuá, que quase metera a pique as duas embarcações às bombardadas. Na violenta refrega, as fustas mostraram-se tão ágeis quanto manobráveis e Fernão vingara o baptismo de fogo que sofrera aos catorze anos de idade, à saída do Tejo, quando corsários franceses tinham tomado o barco de assalto, abandonando-o com outros sobreviventes, nu e aterrorizado, numa praia deserta. Desta vez, as duas valentes tripulações tinham enfrentado e vencido oitenta mouros do mar Roxo, comandados por um renegado maiorquino, a quem aprisionaram junto com os quatro sobreviventes da sua chusma.
Posto a tormentos, o capitão corsário acabara por confessar que a armada de Soleimão Paxá partira já do Suez para tomar Adem e logo seguiria para a Índia, a fim de expulsar os portugueses das suas fortalezas e feitorias. Apesar de instado pelos dois capitães das fustas para se fazer de novo cristão, o homem recusara com palavras duras, mostrando-se tão contumaz e desatinado na sua nova lei que fora lançado vivo ao mar, atado de pés e mãos, com um penedo ao pescoço. Feito o balanço da refrega, viu-se que tinham ido buscar lã para ficarem tosquiados, tendo a presa custado demasiado sangue para o pouco que rendera, porque não se tinham tomado cativos e a carga consistia em tintas de baixo preço.
Embora pobre como antes, é com emoção profunda que Fernão entra no porto de Arquico, lugar assaz importante para os portugueses por ser o único do mar Roxo ainda sob o poder do Preste João.
– Os abexins trazem do sertão muito ouro, marfim, mel e manteiga para trocar aqui, em Daqhano, por panos que nesta terra são muito caros.
Desvia os olhos da paisagem e presta atenção à prática entre o soldado veterano e o padre que embarcou com eles para conhecer aqueles antigos cristãos, conforme afirma nesse preciso momento:
– Ouvi dizer que não são como os de Çacotorá, descendentes dos cristãos do bem-aventurado apóstolo S. Tomé, mas das doze antigas tribos de Israel e eu quero certificar-me se o seu baptismo é, segundo me disseram, tomado com três cerimónias: a do sangue, em que são circuncidados como os judeus; a do fogo, para gravar com ferro em brasa uma cruz na testa e nas fontes do neófito; e a da água, que é igual à nossa. Receio que andem a praticar heresias, por viverem há tantos centos de anos cercados de infiéis.
O soldado parece mais interessado nos tesouros da terra e a sua voz soa sonhadora:
– Dizem que o Negusa Nagast ou Rei dos Reis, como também é por aqui nomeado, mora num palácio todo revestido de ouro e riquíssima pedraria. Muito me prazeria vê-lo!
– Numa carta escrita pela sua própria mão, há mais de quatrocentos anos, o imperador que então reinava dizia que o seu leito era de safira, a pedra da castidade. Apesar de possuir várias esposas formosíssimas, elas só podiam ter conversação com ele quatro vezes por ano, para a procriação de filhos, regressando logo aos seus aposentos, santificadas como Betsabé por David. Temo que este Preste também tenha várias esposas como os mouros.
– É uma terra de prodígios! Há uma raça de homens com cornos, outra com olhos adiante e atrás na cabeça ou só com um olho na testa e também uma gente sem cabeça, com os olhos e a boca no peito, com o comprimento de doze pés e a largura de seis. E há mulheres com grandes corpos e barbas até às mamas que andam com as cabeças rapadas, se vestem de peles e são óptimas caçadoras.
Calam-se e Fernão sente-lhes nos corpos que se inclinam da balaustrada um prazer igual ao seu na antecipação da descoberta, embora por distintos motivos. Reconhece na prática dos dois homens os mitos que correm no Ocidente sobre o fabuloso reino do Preste João, suscitados por uma carta supostamente escrita por um antepassado do imperador abexim, em que descrevia o seu imenso poder e riqueza. Na corte portuguesa, graças às embaixadas que o visitaram, sabe-se que o reino já pouco guarda desse esplendor, se porventura o teve em tempos recuados, não sendo agora senão um povo de negros que, embora cristãos, vivem como cafres2.
Retoma a sua observação do cais, onde se vê claramente, num grupo de negros a cavalo, um homem branco a agitar freneticamente os braços, saudando as fustas. Tem vontade de corresponder a essa saudação, como se lhe fosse especialmente dedicada, um convite para entrar nesse mundo privilegiado e misterioso, de que ele se tornou merecedor ao receber o seu baptismo de sangue nas Índias, lutando contra os mouros, na eterna guerra da Cruz e do Crescente, da Cruzada e da jihad.
Navegara seis mil léguas por mar, de Lisboa à Índia, uma penosa viagem devido ao confinamento no espaço exíguo da nau Frol de la Mar de quase duas centenas de pessoas, forçadas a verem as mesmas caras, seis meses a fio, até já não as poderem sofrer; uma tortura agravada pelas más condições de alojamento, imundície, cheiros nauseabundos e, sobretudo, pragas de ratos, baratas, pulgas e piolhos, que eram o pão-nosso-de-cada-dia nos navios daquela longuíssima carreira.
A navegação decorrera sem acidentes graves de tempestades, calmarias ou doenças, tirante alguns casos de pneumonia entre a gente mesquinha que se embarcava para a Índia como quem ia para Almada; desprovidos de tudo, durante mais de seis meses, viajavam mortos de fome e quase nus, dormindo ao relento no convés da primeira coberta, expostos ora à torreira do sol, ora à inclemência das chuvas e do frio de dois Invernos e dois Verões, segundo as partes do mundo por onde passavam.