126 Jurabaça (Iurabaça) – intérprete no Extremo Oriente (do malaio-javanês juruba- hasa, mestre de língua)
XVI
Onde houver mel, haverá formigas
(malaio)
[Carta] do rei de Malaca, Mahamed Sh-ah, ao Filho do Céu:
Os folangji ladrões vieram a Malaca com muita gente e tomaram a terra e a destruíram, e mataram muita gente e a roubaram, e outra cativaram, de que o rei que foi de Malaca tem o coração triste e anojado. Com grande medo tomou o selo do rei da China e refugiou-se no Bintão127, donde está; e os seus irmãos e parentes fugiram para outras terras. O embaixador do rei de Portugal que está na terra da China é falso, não vem de verdade, que vem para enganar a terra da China. Para o rei da China fazer mercê ao rei de Malaca, este, com coração enojado, manda presente, pede ajuda e gente para lhe ser tornada sua terra.
Do Lichao Shilu (Crónicas Verídicas da Dinastia Li – Coreia)
No dia Wushu da décima segunda lua (1522), o jurubaça Li Shuo entregou um memorial com informações da corte da China:
A nação dos folangji foi sempre impedida pelo reino de Malaca, de ter contactos com a China. Agora, os folangji, após terem destruído Malaca, vieram pedir o fom128 à China. O Tribunal dos Ritos estudou o caso e deliberou: Não se pode autorizar o pedido de um reino que tomou a liberdade de exterminar outro que foi nomeado pela nossa corte como tributário. O seu pedido de ir em audiência à corte foi recusado. Ficaram hospedados na pousada oficial com o mesmo tratamento e privilégios das outras nações. Essas gentes cuja fisionomia se assemelha à dos japoneses, usam roupas e comem comidas não muito civilizadas. Para os chins, são pessoas nunca dantes vistas.
– Como foi que vos cativaram?
– Vossa mercê esteve em Pequim com Tomé Pires? Como vos foi lá?
– Contai-nos tudo, por vossa vida, que nunca se soube ao certo o que vos aconteceu.
Falam, atropelando-se uns aos outros, com a alegria dos antigos tempos de liberdade e sonhos de fortuna, que renasciam no lar de Vasco Calvo, cuja esposa e filhos os recebiam com amor de mãe e irmãos. Este encontro de portugueses à sombra da Grande Muralha da China parece tão improvável que Fernão o toma por milagre ou feitiço. Era como se o destino, ao tecer as teias das suas mesquinhas existências, houvesse determinado aquela encruzilhada nos caminhos das suas desventuras, para que os nove náufragos ali viessem achar a única pessoa capaz de lhes desvendar o mistério da embaixada que há duas décadas os chins mantinham secreto e os portugueses desesperavam de conhecer.
Contemplando as filhas de Calvo, Ana de dezoito anos e Isabel de quinze (ou Meng e Lijie, respectivamente, porque os nomes portugueses apenas se usavam em casa), moças de gracioso e honesto parecer que os servem com modos de donzelas bem-nascidas, Fernão sente o espinho da saudade cravar-se fundo no seu coração. Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas quando ao gentil quadro se vem sobrepor a imagem de Huyen, a cativa cauchim que ficou na memória dos homens de Faria como a Noiva Roubada, mas que para ele fora muito mais do que isso e, embora tente olvidá-la, a sua perda é-lhe insuportável.
Momentos antes, ao ouvi-las tanger e cantar, ora sós, ora a quatro vozes, acompanhadas por Gaspar, um pensamento tentador quase o fizera esquecer os males presentes. O seu patrono Pêro de Faria casara com uma gentia a quem muito amava e lhe dera uma bela prole, não pensava sequer em regressar a Portugal; Tomé Pires e o próprio Calvo desposaram mulheres chins, criaram filhos e alcançaram a paz. Também ele iria viver o resto da sua vida em Quansy, portanto, não seria de estranhar se lhes seguisse o exemplo e tomasse uma daquelas duas moças por esposa, se o pai lha quisesse dar apesar de não possuir nada de seu.
Fecha os olhos aterrado não pela visão do seu futuro ao lado de uma formosa mestiça, mas por se dar conta que está a desistir de regressar a Portugal, ao aceitar com resignação a ideia de ficar para sempre na China. Ergue-se do banco num impulso de fugir para os matos, para gritar os seus medos em solidão, porém, a voz de Calvo prende-o de novo ao lugar.
– Tomé Pires foi boa escolha para embaixador porque, apesar de não ser fidalgo, era um letrado de natural discrição, muito hábil e aprazível a negociar. Sempre curioso em inquirir e saber cousas, acabara de escrever a sua Suma Oriental que, como ele mesmo me disse, era a primeira relação dos lugares do Oriente, portanto, estava bem talhado para levar a cabo a sua missão. A prova maior do seu valor foi que Zhengde, antes de ler as malfadadas cartas, folgou de o ver, fez-lhe muita honra e até jogou com ele às tábulas, estando toda a embaixada presente, a quem mandou banquetear por três vezes com os seus grandes.
– Recebimento deveras espantoso! – exclama Vicente. – Que lástima terem caído em desgraça!
– O Filho do Céu entregava-se mais aos prazeres e vícios do que aos negócios do império, preferindo frequentar os bordéis ou passar meses seguidos no palácio Pao Fang, a Casa do Leopardo, que mandara construir fora da Cidade Púrpura Proibida para dar os seus banquetes e ter conversação com as suas concubinas e favoritos. Quando recebeu a nova do embaixador, preparava-se para fazer uma entrada triunfal na cidade, como comandante dos exércitos que nunca havia chefiado, para festejar como sua a vitória do general Wang Yang-ming sobre uma revolta encabeçada pelo príncipe de Nanquim. A vinda dos estrangeiros seria mais um incenso à sua gloriosa pessoa, por isso decidiu recebê-los, contra o conselho do seu general que não confiava nos folangji e pôs um espião no albergue onde pousavam, para ver como eram as suas armas e copiar os arcabuzes.
Calvo sente, pela primeira vez em muitos anos, o coração aliviado do peso da solidão e do desterro. Poder falar em português a compatriotas que lhe bebem as palavras dá-lhe um novo alento. Com um fundo suspiro de satisfação, retoma o relato:
– Zhengde fez outra cousa de pasmar: entrou nos paraus dos portugueses, mandou abrir todas as arcas, tomou os vestidos que lhe pareceram bem e fez mercê a Tomé Pires, dizendo-lhe que fossem a Pequim que os despachava. Contudo, foi a partir daí que as desgraças começaram, primeiro com a morte de um companheiro durante a travessia das montanhas, depois com as cartas dos mandarins de Cantão e Nanquim, relatando os abusos de Simão de Andrada.
– Então, o principal culpado sempre foi ele! – brada Vicente. – Era de natural muito arrogante, sem cuidar com quem tratava.
– Para piorar o negócio, em Pequim, estava à espera do imperador um enviado d’el-rei de Malaca com uma missiva do seu soberano e sobrinho a pedir socorro para expulsar da sua terra os folangji que lha tinham roubado. Zhengde leu todas estas queixas e acusações, antes de Tomé Pires lhe poder entregar as cartas de Fernão de Andrada e d’el-rei D. Manuel com o seu presente, assim como uma do mandarim de Cantão, escrita quando os lauteaas ainda estavam de bem connosco.
– Tanto os portugueses da embaixada como os que vinham fazer veniaga foram acusados de espionação – lembra Vicente. – Diziam que vínhamos espiar a terra para a tomarmos, como tínhamos feito na Índia e em Malaca, além de sermos tão selvagens que comprávamos e furtávamos crianças, filhos de pessoas honradas, para as comer assadas.
– Calai-vos, por Deus, que estais sempre a interromper! – protesta Borralho, com impaciência. – Vasco Calvo foi testemunha de ver, ouvir e sofrer, deixai-o contar a história miudamente, já que nenhum de nós a sabe tal como se passou!
O anfitrião faz um gesto apaziguador e retoma o relato:
– A partir de então, foi o fim da embaixada! O presente foi tido por mesquinho e as cartas do capitão-mor e d’el-rei de Portugal julgadas falsas e traiçoeiras, porque os seus jurubaças não as leram e, em vez de fazerem uma traslação fiel, escreveram-nas ao estilo destes reinos, mudando a substância delas sem nada dizerem ao capitão-mor ou a Tomé Pires.