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No seu traslado diziam que o rei dos folangji vinha oferecer páreas129 ao Filho do Céu, pedir para ser seu vassalo e levar mercadorias ricas para o seu reino, porém, quando os mandarins do Conselho do Imperador abriram as cartas originais, entregues por Tomé Pires, viram que a sua substância era muito diferente. A diferença das cartas e o pedido de concessão de uma casa em Cantão para uma feitoria dos portugueses confirmaram aos mandarins as suspeitas de que tínhamos vindo com falsidade espiar a sua terra e assim o escreveram ao imperador.

Os quatro jurubaças foram descabeçados por terem saído sem licença das terras do império e trazido os perigosos folangji, os seus servidores foram dados como escravos aos mandarins, as suas mulheres vendidas em Cantão como fazenda de traidores. O imperador mandou ainda arrasar a fortaleza de pedra que Simão Peres construíra e o lugar onde viviam os portugueses, defendendo os chins de fazerem tratos connosco e ordenando-lhes que expulsassem todo o estrangeiro que viesse fazer veniaga, sem o seu selo de vassalagem. O embaixador com a sua comitiva foram mantidos sob vigilância, proibidos de se acercarem sequer do palácio para fazerem as cinco mesuras de obediência, zumbaias necessárias para um embaixador ser admitido à sua presença.

Por desgraça, Zhengde morreu sem ter dado despacho à embaixada. Com a sua morte, todos os negócios do império cessaram pelo que nenhuma decisão foi tomada enquanto o seu sucessor não se sentou no trono. Assim, no dia vinte e dois de Maio, sem nunca terem sido recebidos no palácio, Tomé Pires e os seis portugueses que restavam do seu séquito foram enviados para Cantão com toda a sua fazenda, incluindo o presente que o imperador recusara. Chegaram no dia vinte e dois de Dezembro, já sem Francisco de Budoia que morreu pelo caminho, sendo metidos numas casas, onde estiveram durante trinta e três dias muito vigiados, sem poderem sair ou falar com alguém, sobretudo com estrangeiros. Depois da subida ao trono de Jiajing, então com treze anos, confirmou-se a perdição da embaixada por ordem dos mandarins.

Vasco Calvo cala-se, de voz embargada pelas penosas recordações.

– Foi então que vossa mercê se encontrou com os da embaixada? – pergunta Fernão. – Como veio para cá com tamanho risco?

– Em Malaca não se suspeitava de nada, porque os lauteaas de Cantão, ainda em vida de Zhengde, se apressaram a prender todos os portugueses que por lá andavam, para não poderem avisar-nos. Por isso, em Junho desse mesmo ano de vinte e um, eu e o meu irmão Diogo viemos com alguns navios a Tamão, onde nos montaram uma cilada e eu fiquei prisioneiro com outros que desembarcaram.

Cada vez que chegava um dos nossos navios, os mandarins enviavam recado para os portugueses virem a terra fazer veniaga e, mal os incautos punham o pé na praia, logo os prendiam com as suas fazendas. Pela calada da noite, para que os não sentissem, vinham em batéis ao navio, que tomavam às mãos, matando o capitão, os seus oficiais e os mercadores; furtavam as mercadorias, levando os sobreviventes para os troncos, com as cabeças e as naturas dos mortos às costas, como troféus.

Os mandarins dividiam entre si os despojos das naus, bem como as mercadorias, registando uma muito pequena parte do saque para o imperador, como se fora espólio de corsários. Condenavam à morte todos os portugueses, com os seus aliados, os criados malaios ou siameses, vendendo as suas mulheres e filhos como escravos em outras terras, livrando-se assim das testemunhas dos seus roubos e crimes.

Vinte e três portugueses foram justiçados, cortados em pedaços: cabeça, pernas, braços, o tronco dividido ao meio pela barriga e as suas naturas cortadas e metidas na boca; outros foram mortos às frechadas pelas ruas, com muitos tangeres de festa, para que as gentes de Cantão vissem que não podiam fazer tratos com os nossos. Outros ainda morreram à fome e ao frio nas picotas. Foi durante as audiências do julgamento que encontrei Tomé Pires com os da sua comitiva, Cristóvão Vieira e mais três marinheiros de outras prisões. Estes encontros eram o nosso único consolo enquanto esperávamos pela sentença de morte.

A voz quebra-se-lhe de novo e as lágrimas correm-lhe pelo rosto. Embora a mulher e as filhas pouco entendam do longo arrazoado em português, vendo-o assim afligido rompem em pranto, perante o silêncio comovido dos degredados que não acham na sua própria miséria palavras de consolo para lhes dar. Calvo abraça-as e, limpando as lágrimas, conclui:

– Finalmente publicaram a sentença: o embaixador e a sua gente só seriam livres de partir se os portugueses restituíssem Malaca ao seu lídimo rei, a quem a tinham tomado, como mostrava a carta do seu embaixador, o Tuão Hasan Mudelyar.

– Os chins queriam que entregássemos Malaca? Uma conquista que tanto sangue custou aos nossos?

– Uma condição impossível de satisfazer, nem mesmo para vos salvar!

– Nem nós contávamos com isso! – protesta Calvo. – Esperávamos, contudo, que el-rei ou os governadores tomassem em conta as nossas informações sobre o fraco poder de guerra deste povo e nos viessem libertar pela força. Isso não aconteceu, de modo que, após alguns anos de prisão e maus tratos, só eu e Tomé Pires sobrevivemos.

A noite cerrara-se em torno do lar acolhedor, onde durante algumas horas aqueles dez portugueses se esqueceram do degredo e da miséria, reinventando a sua pátria com o regresso ao seio da família para, reunidos à lareira, contarem as suas aventuras. Kexin e as filhas haviam acendido as candeias e a sua presença silenciosa, aliada aos sons familiares da casa – o roçagar dos panos, o tinir das porcelanas, os risos e correrias de crianças, o cacarejo das aves de capoeira – trazia-lhes paz ao coração, mitigando-lhes a saudade.

– Vede como o tempo passou sem nos darmos conta! – alerta Vicente, preocupado, ao ouvir o som do gongo na torre próxima. – Como estrangeiros, degredados, é perigoso andarmos a horas mortas pelos caminhos.

– Tendes razão, é perigoso – concorda Calvo. – Vinde de novo no próximo domingo comer connosco e prosseguiremos com as nossas memórias. Acompanhai-nos ainda a dar graças a Deus por este encontro e por vos ter poupado a vida. Temos de orar em segredo por causa dos parentes da minha mulher, que são gente honrada mas gentia.

A esposa tira uma chave do molho que traz preso ao braço e vai abrir as portas de um oratório, semelhante ao de Inês de Leiria, com um altar onde brilham uma cruz, dois castiçais e uma lamparina, tudo em boa prata. O casal e os quatro filhos ajoelham-se e de mãos erguidas oram num português tão bem pronunciado como se fossem nascidos, criados em Alcochete, a terra de seu pai:

– Verdadeiro Deus, nós pecadores prometemos viver e morrer na nossa santíssima Fé Católica, como bons e verdadeiros cristãos, confessando e crendo na Vossa santa verdade, tudo o que tem e crê a Santa Madre Igreja de Roma, destas nossas almas com Vosso precioso sangue remidas, Vos fazemos preito e menagem, para com elas Vos servirmos toda a vida até na hora da morte Vo-las entregarmos como a Deus e Senhor.

Atrás deles, também de joelhos, os degredados sentem grande turvação, mesmo os de coração mais arisco, por verem em terra tão longínqua, sem conhecimento de Deus, dois meninos e duas donzelas a orarem com tamanho fervor. Com a devoção de quem presencia um milagre, acompanham-nos no Pater Noster, Ave Maria, Credo e Salve Regina.

Passava das três horas da manhã, quando regressaram à cabana, ainda mal refeitos da maravilha.

127 Pahag.

128 Vassalagem com pagamento de tributos à China.

129 Tributo pago por um soberano ou Estado a outro, em reconhecimento de vassalagem.

XVII

As lágrimas crescem nas viúvas e os piolhos nos viúvos

(chinês)

O Sétimo Dia do Sétimo Mês Lunar

No meio da relva os grilos cantam

E as folhas da firmiana caem em sobressalto.

Há agora uma profunda tristeza na terra e no céu.

Nuvens são escadas, a lua é o chão