Выбрать главу

A passagem [do céu] tem mil pisos aferrolhados.

Mesmo que venham jangadas flutuantes130

E jangadas flutuantes partam,

Não se podem encontrar.

As pegas constroem uma ponte d’estrelas

Para o seu encontro anual.

Penso na infinita emoção da separação e saudade da partida.

Vaqueiro e Tecelã131,

Porque é que na vossa separação

Há momentos de céu claro,

Um instante de chuva,

Um instante de vento?

(Poema de Li Qingzhào, glosando No Rasto do Doce Incenso132)

Hou hsu

Onde há posse haverá perda da posse; onde há concentração, haverá dispersão – é este o princípio constante nas coisas. Alguém perde um arco, outra pessoa encontra um arco. O que há de tão especial nisto?

(Li Qingzhào133)

Tinham saído da casa de Calvo, a espaços, de três em três, caminhando cosidos com os muros e as árvores, sempre com o credo na boca, vendo um upo em cada sombra, só ousando respirar quando se acharam a salvo na cabana. Embora de paredes escalavradas, com o telhado de colmo apodrecido, não se podia comparar à prisão ou às ferrarias onde tinham trabalhado como escravos quase até à morte, consumidos de vérmina e modorra. Ali, era a sua casa, onde viviam como homens livres, apesar das privações.

A madrugada vai alta e Fernão Mendes não consegue conciliar o sono. O que o mantém desperto não é o ressonar dos companheiros, enrolados como ele sobre as esteiras espalhadas no chão de terra batida da única divisão do casebre, nem o restolhar dos ratos e outras bestiolas que usam visitá-los ou são, como eles, moradoras do lugar; nem a fome rotineira, porque nesse dia haviam tirado a barriga de misérias graças à generosidade do compatriota.

Impede-o de dormir um negrume que lhe esmaga a alma, não deixando lugar para a luz das pequenas alegrias que experimentou horas antes na companhia do Alcochete e da sua família. A presença das duas graciosas moças, sobretudo de Meng com o seu rosto de finas linhas, de uma brancura de cera, assim como a menção ao Duplo Sétimo, a festa pagã que celebravam apesar de serem cristãs, avivara-lhe a dor da saudade de Huyen e o fantasma da formosa cauchim viera atormentá-lo, como se, pelo remorso, quisesse levá-lo à loucura ou à morte em expiação dos seus crimes.

Sente-se o mais enjeitado dos homens, um pobre coitado a quem os Fados perseguem com toda a má sorte do mundo, pondo-lhe a vida em constante perigo, com perda de todos os seus bens e, por fim, até do ser que mais amara no mundo. O sonhado Oriente não passava de uma ilusão. Desfeito o engano, restava-lhe a realidade: não passava de um vagamundo sujeito a morrer às mãos dos carrascos chins, como os companheiros de Tomé Pires, ou a ficar preso na Grande Muralha para o resto dos seus dias, à semelhança de Vasco Calvo.

Esmaga-o a solidão do pária, sem pátria, sem lar e sem família. Na sua vida de aventureiro peregrino, Huyen tornara-se o repositório de todos os seus anseios, encarnando o próprio espírito do Oriente: cativa mas indomada, doce como mel, enigmática como uma especiaria e dura como diamante. A donzela de rosto cândido e alma ardente servira-o com a submissão de uma concubina e o desdém de uma rainha. Fernão adorara-a com esse amor sem esperança exalçado pelos trovadores, cuja coita ele não saberia pôr em verso, mas, melhor do que eles, soubera sofrer por quem nunca lhe tivera bem-querer e o vira sempre como o inimigo, o carrasco da sua felicidade.

Resgatara-a por uma verdadeira fortuna, renunciando por amor dela ao seu quinhão no saque das lanteias e também dos juncos do corsário Hinimilau – um chim renegado, matador de portugueses, que eles haviam desbaratado na enseada da Cochinchina e cuja presa rendera quase quarenta mil taéis em peças de seda, cetim e damasco, almíscar e porcelana fina. E mais renderia, se não tivessem sido forçados a queimar um dos juncos, por não haver equipação para o marear, embora António de Faria mandasse recolher do mar dezasseis corsários prestes a afogarem-se, para reforçar as chusmas.

Hinimilau e os quatro oficiais sobreviventes foram justiçados e atirados ao mar, quando Cristóvão Borralho descobriu no porão do junco do capitão os corpos descabeçados dos cristãos cativos, incluindo uma mulher e alguns meninos filhos de portugueses. Aproveitando o regozijo geral e fiado na promessa de alvíssaras que Faria lhe fizera por lhe ter salvado a vida no anterior combate, Fernão fora apresentar-lhe o seu pedido.

– Senhor capitão – dissera, recorrendo ao seu admirável engenho para advogar as causas perdidas ou safar-se dos maiores apertos –, vossa mercê viu já em Mutipinão, quando fizemos os nossos tratos, que não se pode vender ou pedir resgate pela moça e pelos meninos cauchins, porque em toda esta costa dos mares da China nos tomarão por corsários ladrões e, se escaparmos com vida, não mais lograremos vender aqui seja o que for, além de termos todos os aytaos do Filho do Céu e das nações suas tributárias a darem-nos caça com as suas armadas.

– Assi é, de verdade – concordara Faria, olhando-o com estranheza. – A que propósito.

– Tenho apenas um escravo para me servir e preciso de servos, quando volvermos a Malaca, pelo que seria uma grande mercê se me fosse permitido resgatar a Noiva Roubada e os dois meninos seus irmãos, com o meu quinhão do saque.

O capitão soltara uma risada brejeira e, tratando-o por tu como a um camarada de armas, perguntara:

– Desejas assim tanto a moça? Se ela fosse minha, oferecia-ta já, bem como os seus irmãos e a velha que lhes faz companhia, em paga da grande dívida que tenho para contigo. – Fizera um gesto com a mão a atalhar-lhe o protesto, acrescentando com pena: – Contudo, a Noiva Roubada e os outros cativos são parte do esbulho das lanteias de Tilaumera, sendo pertença de todos os que, como tu, participaram no assalto. Assi, terás de a comprar aos nossos companheiros, mas eu prometo sustentar a tua demanda. – E terminara com um trejeito de zombaria: – Não quero uma mulher sem homem na minha armada, porque dará causa a sarilhos pondo ao despique, por mor dela, chins e portugueses. Reza para que nenhum outro dê mais valor à tua flor de lótus que aos taéis de prata ou às peças de seda.

O negócio fora levado a cabo sem grandes embargos, a contento de todos, por reconhecerem a impossibilidade de pedirem resgate ou venderem a filha do anchaci de Colem naquelas paragens e tão cedo não volveriam a Malaca. Fernão cedera-lhes, em troca de Huyen, dos dois irmãos e da parente sua guardiã, o espólio de Tilaumera, acrescentando-lhe ainda uma boa parte do seu quinhão nas futuras partilhas do junco de Hinimilau e uma bolsa de prata que Faria lhe dera de presente.

Perdera de novo uma fortuna e desta vez a culpa não fora dos corsários nem das tempestades ou naufrágios, mas tão-só daquela sua loucura ou cegueira, de que todavia não se arrependia. Pura como jade em fogo, fragrante como lótus na lama, recitara Lin Dan quando ele lhe descrevera Huyen. O velho poeta falara como um oráculo, pois a Noiva Roubada fora para Fernão a verdadeira encarnação do Oriente, a sua miragem de ilhas afortunadas. Possuí-la era apoderar-se dos sabores, dos perfumes e da beleza daquele mundo, percorrer-lhe as linhas e volumes na geografia do corpo, mergulhar nas suas águas para conhecer o caudal dos rios, rasgar-lhe o ventre e sentir a brandura do húmus onde ansiava lançar a sua semente para se fundir com ela.

Contudo, essa comunhão de corpos e almas, mais do que da conjunção favorável dos astros, dependia da participação de duas vontades, a sua – acesa em fogo ainda antes de a ver – e a dela, sem chama, que ele nunca pudera atear com a sua paixão e se fizera cinzenta e fria como um rescaldo de fogueira.

Nas viagens mais longas, os navios transformavam-se em prisões flutuantes, onde se amontoavam dezenas de homens, privados de mulheres e a viverem uns com os outros numa intimidade forçada, durante largos meses, até já não se poderem sofrer, acabando fatalmente por travar lutas de morte por um xique-mique ou a cevar rancores e enfadamentos quer nos inimigos, quer em vítimas inocentes.