Выбрать главу

A falta de mulheres era o castigo mais duro de suportar, tendo António de Faria proibido os chins da tripulação de levarem a família, como era seu costume – exceptuando o piloto recém-casado que se recusara a embarcar sem a esposa e ele não pudera substituir a tempo –, dizendo-lhes que a sua armada era de guerra e ia em busca do corsário Coja Acem para lhe dar combate, portanto os navios não eram lugar seguro para mulheres e crianças.

Naquelas partes, a sodomia era uma prática corrente a que até alguns portugueses se entregavam sem pejo, sobretudo os que viviam há muito nas prisões do mar, por isso, não só Huyen, mas também os seus dois irmãos, que a igualavam em beleza, corriam grandes riscos de sevícias e, por sua vez, faziam perigar a precária tranquilidade do navio, pois a qualquer momento poderiam desencadear entre os matalotes rixas sangrentas pela sua posse, apesar do defeso que António de Faria lhes impusera de molestarem os cativos ou sequer de se acercarem deles.

O capitão apresentara como razão para o interdito serem mercadoria assaz preciosa, pela qual esperava obter rico resgate da família, desde que nenhuma das peças, em particular a moça, fosse danificada. E dera ordem a Fernão para se ocupar deles, responsabilizando-o pela sua segurança, comando que ele recebera como uma dádiva dos céus e cumprira com o zelo de um mastim de guarda ou do próprio Cérbero, o infernal cão das três cabeças.

Para melhor os resguardar dos olhos cobiçosos, arranjara-lhes um cubículo junto do alojamento do piloto, cuja esposa lhes poderia fazer companhia e dar algum conforto. Com eles se quedara Mi, a irmã mais velha do anchaci de Colem, que se recusara a abandonar os sobrinhos à sua sorte, visto ter sido designada pela família Chu para tratar das cerimónias do compromisso, noivado e casamento de Huyen com o filho do chifuu de Pandoree e zelar para que as negociações se fizessem dentro dos mais altos padrões de cortesia.

Recorrendo à amizade de Borralho que, como feitor da armada, tinha as chaves de todas as pitacas e baús de mercadorias, Fernão devolvera aos cativos alguns pertences de menor valia, para lhes dar um pouco de conforto e mitigar as saudades de casa.

– A tomada das lanteias foi uma necessidade, porque quedámos desprovidos de tudo, depois do ataque dos corsários cauchins que nos roubaram o barco dos mantimentos e toda a nossa fazenda – tratara de se justificar, ao entregar-lhes os presentes. – Se não fizéssemos o mesmo que eles, morreríamos.

Sentira remorsos por lhe mentir como um fideputa mal nascido, evocando a lei do olho por olho, dente por dente, bem ao gosto dos orientais, assim como uma certa ideia de justiça dos céus, por intermédio de Xiwangmu, a deusa da vingança.

– Se fosseis comerciantes honestos, teríeis pedido ajuda, a qual vos seria dada de muito boa vontade pelos nossos, contudo escolhestes assaltar-nos à má-fé, para nos roubar – dissera Mi, com severidade.

– Não sois melhores do que os wokou – a voz melodiosa de Huyen ressumara de desprezo, ferindo-o. – Não passais de meros ladrões do mar, que o meu pai há-de perseguir até vos varrer da face da terra.

– O capitão Faria não é um corsário sanguinário, ninguém molestou os vossos convidados, que foram postos em terra sãos e salvos.

– Se ele é tão generoso como dizes, que fazemos nós aqui? – insistira a voz acusadora por trás do véu. – Por que razão não nos libertou como aos nossos parentes ou me entregou ao meu noivo que vinha receber-me?

Desesperado, por não poder ver-lhe os olhos escondidos pelo véu, Fernão sentira a paixão da sua voz, no arrepio da pele que o desejo dela lhe causava, cada vez mais intenso, por vezes insano. Consolara-os com muitas promessas (que sempre custam pouco e causam bom efeito) de que seriam entregues à família, logo que o capitão achasse um lugar seguro para ferrar a armada e fazer veniaga. Abandonara o cubículo, envergonhado da sua falsidade que, todavia, acabara por lhe conquistar as boas graças dos reféns.

Fizera por ganhar a confiança dos irmãos e da casamenteira com os presentes, a fim de os ter como aliados no árduo caminho para o coração de Huyen. A sua urdidura dava-lhe esperança de ser a teia como ele desejava, porque passara a ser aceite como um protector, recebendo mesmo da inconsolável noiva algumas palavras de gratidão, que o fortificaram para enfrentar as dificuldades que se avizinhavam.

A pretexto de António de Faria lhe ter confiado a guarda dos cativos, passava a maior parte do seu tempo com eles, visto ter pouco que fazer durante a navegação. Na sua presença, os reféns falavam na língua chim para ele os poder entender, pelo que deixara de recorrer ao seu moço como intérprete, quando a velha Mi e os meninos lhe contavam as suas vidas ou ele lhes respondia às perguntas sobre a sua nação e os seus usos. Era-lhe cada vez mais penoso inventar desculpas sempre que eles procuravam saber se já havia notícia do anchaci de Colem e do negócio do seu resgate, ou animá-los com falsas esperanças de liberdade. Outras vezes, sem coragem para enfrentar Huyen e mentir-lhe de novo, deixava-se ficar à entrada do cubículo, sem falar, a ouvir as suas conversas com a esposa do piloto ou a escutar, arrebatado, as canções que ela tocava no erhu que lhe devolvera.

Agora, deitado na esteira da sua cabana, na madrugada insone, Fernão recorda a primeira vez que a ouvira e o efeito devastador da sua voz e da canção que ela escolhera para exprimir a sua paixão pelo noivo perdido:

Só na minha recatada câmara,

A mágoa rasga-me as entranhas com mil golpes.

Eu amo a Primavera, mas a Primavera passa,

As gotas de chuva apressam a queda das flores.

Debruço-me da balaustrada,

Com sentimentos indistintos.

Onde está o meu amado?

O céu funde-se com as plantas fragrantes,

Impede-me de ver a estrada do seu regresso134.

Fora invadido por sentimentos contraditórios que se fundiam numa raiva insana contra a Noiva Roubada que cantava o seu amor por outro homem, indiferente ao sofrimento que lhe infligia com a sua voz a gemer de saudade e amor ardente, intensificada pelos sons pungentes do instrumento.

Fernão revolve-se na esteira e geme, sentindo o corpo a arder, o sexo a intumescer e a pulsar de desejo, como nesse dia distante, quando os ciúmes o cegaram e quisera irromper pela câmara, expulsar os parentes e tomá-la à força no catre, para apagar com o estupro a memória do rival.

Em vez disso, refugiara-se no porão e, deixando-se cair num canto da pitaca mais sombria (o único lugar sem gente na maldita prisão flutuante), buscara alívio para o seu tormento no prazer solitário que o deixara ainda mais prostrado e insatisfeito.

Quisera crer no que dizia a voz do povo, pela boca de Borralho para o consolar, de que com afagos a mula e a mulher sempre fazem o que o homem quer. Como o cão que ama o dono que o maltrata, voltara à companhia de Huyen que, de certo modo, parecia aceitar a sua presença, pois já não interrompia o canto e a música, nem cobria o rosto quando ele entrava na câmara ou baixava os olhos se encontrava o seu olhar, deixando-o mareado de amor.

Fora no dia do Duplo Sétimo do calendário chim, ao ouvi-la cantar a lenda de amor das duas estrelas, que Fernão decidira pedir Huyen ao capitão. Tinha-lhes levado a ceia, nessa noite, quando Bao, a mulher do piloto Qing Hu aparecera com uma oferta de doces.

– Hoje é o Sétimo Dia do Sétimo Mês. – dissera-lhe, vendo a sua expressão de surpresa. – Um dia único no ano!

– Foi um dia igual a tantos outros! – resmungara o mais velho dos dois irmãos.

– Que tem ele de especial? – perguntara o mais moço.

Lágrimas perfeitas como aljôfar rolaram pelo rosto de Huyen, mas a sua voz não acusara mais do que um leve tremor quando falara para os irmãos:

– Em casa, estaríamos a festejar na varanda com os avós, os pais, os tios e os primos, a fazer ofertas à bodhisattva Guayin. Neste dia, em cada ano, tem lugar o encontro de Zhi Nucom Niu Lang, o seu amado. A Donzela Tecelã, filha do imperador dos Céus, e o Vaqueiro amavam-se profundamente, mas o seu amor desagradou ao imperador que os separou, exilando-os, cada um para seu lado da Via Láctea. Todavia, o desespero da Tecelã logrou abrandar a sanha do pai que lhe permite encontrar-se com o seu amado uma vez por ano. É hoje, na noite do Duplo Sétimo, que a Tecelã vai atravessar a Via Láctea por uma ponte formada por um bando de pegas, para se unir ao seu Vaqueiro. – Fez uma pausa e exclamou com um suspiro: – Afortunada Zhi Nu-ū!