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Tomou o erhu nas mãos de marfim e moveu o arco de crina de cavalo entre as duas cordas de seda do estranho instrumento que parecia uma mistura de viola e alaúde, com um corpo estreito e alongado a terminar numa pequena caixa de som feita de pele de cobra. Huyen tangia-o como se lhe emprestasse a sua alma, fazendo-o vibrar com todas as emoções de uma mulher enamorada.

Fernão ouvira a história de Vega e Altair e nela reconhecia não a Tecelã a chorar de amor pelo Vaqueiro, mas Huyen a pulsar de paixão e de saudade por se ver apartada do seu amado Pham. De novo o cegara o ciúme com a violência do ódio e, sem uma palavra, abandonara a câmara para ir falar com António de Faria a fim de lhe pedir a cauchim como paga das alvíssaras prometidas.

A ideia de ter Huyen só para si inebriara-o a ponto de não se aperceber de que a perdera, no momento em que a ganhara. Quando soube ter sido comprada pelo folangji que se insinuara no coração dos irmãos e no seu, fingindo-se apiedado da sua sorte apenas para esconder a falsidade dos seus propósitos, a refém passara a vê-lo como o pior dos inimigos. Perdida a esperança de ser resgatada pela família, cobrira o rosto com um pesado véu e não voltara a dirigir-lhe a palavra.

Fernão apaziguara Mi, ao jurar-lhe que Huyen seria sua esposa e não sua escrava, em Malaca, lhes daria a mesma vida que tinham em casa de seus pais, mas, nada que fizera ou dissera lograra amaciar a soberba cauchim. Para seu maior castigo, o ódio de Huyen era um acinte que lhe espevitava o desejo, já de si ardente. Sentia-se possuído por uma força maléfica, que o tomara de assalto abafando todos os sentimentos cristãos e mesmo a sua consciência, até nada mais restar senão aquela febre que o atormentava e só teria alívio quando a fornicasse com igual ódio, comprazendo-se no seu choro de dor e humilhação, soltando o jorro quente do seu sémen no corpo violado.

E fizera-o, com a brutalidade de um violador, sem atender a súplicas ou prantos, obedecendo apenas ao seu instinto, atraído pelo seu corpo como o fogo de Santelmo pelos mastros, percorrendo-lhe a pele de seda com os lábios sôfregos que a arrepiavam de asco. Por fim, Huyen deixara de se debater e de chorar, permanecendo de olhos abertos, sem expressão, enquanto ele a possuía de novo, já sem violência, ferido pela amarga sensação de penetrar o corpo de uma morta. Desde esse dia a cauchim não mais cantara, sorrira ou falara na sua presença e nem sequer os irmãos ou a tia logravam arrancá-la ao quebranto em que se afundara.

Contorce-se na esteira e cerra os olhos porque mesmo na escuridão do casebre não deixa de ver o seu rosto a atormentá-lo. Humilhara-se a seus pés como um mendigo ou um escravo suplicando por compaixão, amando-a com infinita ternura e adoração para se redimir, sem jamais abrandar a sua rigidez de estatueta de marfim. Um corpo inerte a submeter-se aos seus desejos com docilidade, mas cujo espírito estava ausente dos olhos de azeviche que o trespassavam sem o verem.

Nos sete meses e meio que passaram na enseada de Ainão, navegando de rio em rio ou costa a costa, em busca do corsário Coja Acem, sofrera com paixão essa frieza que o levara a desejá-la cada vez mais. O ciúme endoidecia-o, como uma condenação aos infernos, porque o homem é fogo, a mulher estopa, vem o diabo e assopra. Fernão via como os matalotes e os soldados, enfadados com a falta de acção, fartos da vida do mar, o olhavam invejosos, cobiçando-lhe Huyen, tornando-se cada vez mais atrevidos, passando já dos chistes às avançadas, rondando-lhe o cubículo como moscas ao mel.

Com a lua nova de Outubro viera o castigo dos céus, junto à ilha dos Ladrões. O mar começara a empolar-se e o vento de Sueste tomara-os em desabrigado e de travessão à costa, fazendo um escarcéu tão alto, de vagas tão grossas que se buscaram todos os meios de salvação, cortando mastros, desfazendo chapitéus e obras mortas de popa e de proa, alijando o convés para se fazerem lestos, guarnecendo as bombas de novo, baldeando as fazendas ao mar, ajustando calabretes e viradores, cuidando da artilharia grossa que se desencarretara. Nada disto bastara para impedir a destruição de toda a armada135.

Na escuridão profunda, com os corpos enregelados pelo vento que soprava muito rijo e pelas águas cruzadas a cobrirem o barco com vagas altíssimas, os marinheiros já não faziam conta de si, porque o junco não dava pelo leme, antes era levado à vontade dos ventos e das ondas, de uma para outra parte. O mar fervia, os ares assemelhavam-se a uma imagem do juízo final, rasgados por trovões e relâmpagos. Fernão, que tivera de acudir aos trabalhos de salvamento, nem pensava no perigo que corria, mareado de angústia por não poder estar junto de Huyen para a proteger.

Passavam duas horas da meia-noite quando a fúria da tempestade parecera abrandar e Fernão correra para a que era agora a sua câmara de casado. Não chegara lá, porque de súbito dera-lhes um pegão de vento tão rijo que lançara as quatro embarcações juntas, como se fossem madeiros, contra os rochedos da costa, desfazendo-as em pedaços.

Lutando com os destroços, nas águas revoltas, frias como a morte que o rondava, procurara Huyen entre os corpos que se agitavam ou gritavam de terror. Vira-a num relance, agarrada aos dois irmãos que não se mexiam, parecendo desacordados ou mortos. Segurara-se a um madeiro que flutuava e nadara em direcção à cauchim, quase certo da sua salvação. Estavam perto da costa, poderiam chegar à praia se não se despedaçassem nas rochas. Não havia sinais de Mi.

Golpeando os que buscavam agarrar-se à sua tábua, Fernão alcançara-os e bradara-lhe não temas, estou aqui, vou levar-te a salvo para a praia. Os dois meninos estavam mortos, mas ela não parecia disposta a largá-los e o peso dos seus corpos puxava-a para o fundo. Agarra-te ao madeiro, gritara-lhe em ânsias, solta-os, que nada podes fazer por eles.

Sem dizer uma palavra, Huyen olhara-o com tamanha aversão que ele estremecera com um frio maior do que o das águas que o cobriam. Com um impulso, a cauchim afastara-se dele, na direcção oposta à da praia e Fernão, amaldiçoando a sua impotência, vira-a desaparecer puxada pelos dois corpos que se afundavam.

130 Segundo o Livro da Ciência Natural (Bowuehi) escrito por Zhang Hua, da dinastia Jin, nos princípios do mundo a Via Láctea tinha comunicação com o mar e os homens podiam viajar numa grande jangada de madeira e chegar ao Céu, após dez dias ímpares de navegação; aí veriam a Tecelã ocupada no seu tear, no palácio, e o Vaqueiro a guardar o seu gado nas margens do rio Celestial.

131 Niu Lang ( ) ou Vaqueiro é a estrela Altair e Zhi Nu- ( ) ou Donzela Tecelã é Vega.

132 Tradução de uma versão bilingue (chinês-inglês) pela autora.

133 Li Qingzhào ou Li Yi-an (1083-1151) foi uma poetisa chinesa da época da dinastia Song.

134 Glosa de Li Qingzhào ao poema Pintar os lábios de vermelho

135 Peregrinação, capítulo LIII.

XVIII

A glória do conquistador é como a iluminação do incêndio

(português)

Carta de Afonso de Albuquerque a Ruy de Araújo:

Amigo Ruy d’Araújo, vos envio muito saudar.

Bem sabeis quão obrigado sou, e os Capitães, e toda a mais gente desta Armada a morrermos por serviço de Deus, e d’ElRei D. Manuel nosso Senhor, e mais em guerra tão justa. O rei de Malaca se pôs em determinação de me não entregar os cristãos, nem aceitar a paz e amizade, que lhe ofereci da parte do rei de Portugal, pelas quais razões me convém pôr-lhe as mãos sem mais dilação.