Se vos recrescer disto passardes vós trabalho, tomai-o em paciência, porque a mim me convém, pelo que cumpre ao estado do rei de Portugal, ver o cabo a este negócio, e provar suas forças com as dos imigos, e quanto mais tardar, terão eles mais tempo de se fortificarem.
Resposta de Ruy de Araújo a Afonso de Albuquerque:
Senhor, beijo-vos as mãos pelo desejo que tendes em nos salvar, porém que Deus não queira que a Armada do rei de Portugal, nem os seus Portugueses, recebam afronta, nem abatimento, por nos segurarem a vida, porque nós obrigados somos a morrer por serviço de Deus, e de nosso rei
Sabei, Senhor, que o rei [de Malaca] se faz prestes quanto pode, e que os Guzarates são os que andam de dia e de noite ajudando na fortificação das estâncias, e que estes são os principais inimigos, que não podem sofrer fazerem os Portugueses assento na terra.
Se determinais de cometer a Cidade, deveis de o fazer o mais prestes que puderdes, antes que a cidade mais se aperceba, sem mais falar em concerto, nem pedir cristãos, porque sabei certo, que o rei não vo-los há-de dar senão por força, e está tão soberbo com a muita gente estrangeira que tem, que não cuida senão em vos tomar a armada.
O primeiro começo desse cometimento deve ser nas naus dos mouros, por serem quem faz todo o mal, porque estas gentes se prezam mais de uma sutil traição que de todolas cavalarias do mundo. E por tanto, se de Malaca quereis algum bem há de ser com muita crueza de guerra, e tomar nela a mor riqueza junta que há em todo o mundo; com que, assi destruídos de todo, então assentareis o que quiserdes.
E quanto a mim, e a meus companheiros, Senhor, não deixeis de fazer o que cumpra ao serviço do rei de Portugal, porque já estamos oferecidos a Deus para receber martírio de morte.
Embora sujeitos às leis dos chins, os nove degredados continuavam a reger as suas vidas pelo calendário litúrgico cristão, respeitando os seus domingos e dias santos, celebrando a Páscoa e outras solenidades, a fim de se manterem ligados à pátria e preservarem a sua identidade.
Domingo, depois de tomarem banho no rio e de despiolharem uns aos outros os cabelos e barbas, vestiram os seus melhores andrajos – a gente da terra era pobre e a pouca roupa que lhes davam de esmola já tinha gasto o seu tempo de vida nos corpos dos seus donos – e apresentaram-se à porta da casa de Calvo ainda antes do meio-dia, sendo recebidos por toda a família com a calorosa amizade do primeiro dia.
– Até parece que estamos em casa, na nossa terra, e não neste lugar do fim do mundo! – exclama Borralho, de estômago reconfortado pela abundante refeição, sorrindo enlevado para Lijie que lhe serve um vinho de fruta.
Calvo desenrola sobre a mesa um rolo de papéis.
– Aqui tendes o traslado do despacho do Ministério dos Ritos a exigir a entrega da Malaca, que determinou o nosso destino, meu e de Tomé Pires.
– Portugal não podia desistir daquela conquista! – insiste Vicente Morosa. – Os mouros chamam Olho-do-sol a Malaca, porque tal como o astro-rei brilha sobre todas as terras, assim Malaca se ergue sobre as outras cidades e está no centro de todas as derrotas comerciais dos mares da Pestana do Mundo.
Fernão, que acabara de ler o documento, protesta indignado:
– Pêro de Faria, que ainda deve ser o capitão de Malaca, a cujo mando fiz viagens a Aru, Pão e Patane, também tomou parte na sua tomada e ainda fala com dor dos trabalhos que passaram e da gente que morreu.
– Os ossos do grande Albuquerque haviam de se revirar na cova, com a mesma sanha que eu sinto! – corta Vicente. – Tivemos de acometer Malaca por duas vezes, pois não lográmos tomá-la no primeiro assalto. Os mouros e malaios que eram em muito maior número e defenderam-na valentemente! Foi a minha primeira campanha na Índia, inda mal me despontava a barba.
– Estiveste com O Terríbil na tomada de Malaca? Eu também! – exclama Calvo, de olhos brilhantes, tratando-o por tu como a um velho camarada de armas.
– Pelejei ao lado do Fernão Magalhães, que me acautelou contra as traições dos mouros de Malaca. Ele conhecia-lhes as manhas por ter feito parte da primeira expedição de Diogo Lopes Sequeira em mil quinhentos e oito.
– Eu lembro-me bem dele! Magalhães inda vive?
– Não vos chegou rascunho do seu último feito? – estranha Fernão. – Foi cousa de espantar o mundo!
– Como podia? – agasta-se Calvo. – Há mais de vinte anos que estou cativo nesta terra, apartado do resto do mundo!
– Perdoe-me, vossa mercê, que sou um asno chapado! – roga-lhe envergonhado. – Dizia-se no reino que Magalhães ficou muito sofrido por el-rei D. Manuel não lhe ter reconhecido os bons serviços, nem feito qualquer mercê, e por isso renegou da pátria.
– Magalhães era um homem de honra e de bravura sem par – lamentou Calvo, interrompendo-o –, entrou em muitas batalhas na Índia e em África, até foi ferido em Cananor.
– Foi oferecer-se aos reis católicos a cujo mando fez uma formidável viagem à roda do mundo. No regresso, os gentios da ilha de Mactan136 mataram-no em combate e foi o capitão espanhol Juan Sebastián Elcano quem concluiu o feito.
– .Cuja glória poderia ter cabido a Portugal, mas na nossa terra quando na república a monda cresce, os bons não vêm a lume.
– Pois já nesse ano de quinhentos e oito – retomou Calvo –, esse valente avisou o capitão-mor Lopes de Sequeira da conspiração dos mouros de Malaca para o matarem, além de salvar também de uma cilada o primo Francisco Serrão e outros companheiros que tinham desembarcado. A feitoria foi pilhada e incendiada. Entre os portugueses houve nove mortos, dezanove cativos e muitos feridos.
Vicente acrescentou para os companheiros que os ouviam pasmados:
– Foi a entrega desses cativos que Albuquerque veio demandar a Mahamed, três anos mais tarde, em senho de boa amizade embora, por via das dúvidas, sustentasse o seu pedido com uma armada de dezassete navios, mil e duzentos soldados portugueses e outros duzentos malabares! O feitor Rui de Araújo, que era um dos sobreviventes, enviara-lhe cartas de Malaca secretamente, suplicando-lhe que os fosse libertar.
– Araújo insistia muito para que o governador acometesse Malaca com a maior armada que pudesse, a fim de forçar o rei a fazer pazes ou para tomar a cidade, pois, se ele se fosse como viera, perderíamos a face e o respeito dos nossos inimigos, que se alvoraçariam de novo e massacrariam os cativos portugueses. Estas razões decidiram Albuquerque.
– Ele chamou-lhe Leão dos Ladrões do Mar! – exclama Fernão, sentindo-se de novo apanhado nessa teia intrincada que o ligava a um Passado, Ideia ou Empreendimento muito mais grandiosos do que a mera aventura de enriquecer no trato das especiarias ou das sedas.
– Quem? – pergunta Borralho com estranheza, rompendo o silêncio que se fizera.
– O da estátua, no meio do rio! O mausoléu junto à vila de Iunquileu.
– Que estátua? – pergunta Vasco Calvo, impaciente.
– A do Tuão Hasan Mudelyar, o embaixador d’el-rei de Malaca! – Cristóvão recorda-se subitamente da emoção com que haviam lido, naquele lugar remoto, o nome do vizo-rei apesar de vituperado pelos inimigos. – Afinal, o embaixador malaio morreu na China como o nosso Tomé Pires! Cá se fazem, cá se pagam.
Vendo o olhar de desconcerto do seu anfitrião, Fernão esclarece-o:
– Quando vínhamos pelo rio Batampina, vimos um monumento armado sobre quatro colunas de pedra lustrada, com um coruchéu de azulejos de porcelana brancos e pretos. Continha sete pelouros de ferro portugueses e, na frontaria, um letreiro de letras douradas à charachina com os dizeres (se a memória me não falha): Aqui jaz Tuão Hasan Mudelyar, tio do rei de Malaca, a quem a morte levou antes que Deus o vingasse do capitão Albuquerque, leão dos roubos do mar137.
– Nunca vi esse monumento, nem ouvi falar dele!
– As voltas que o mundo dá! – exclama Vicente: – Vossa mercê não se lembra dos seis capitães chins, que estavam no porto de Malaca com os seus juncos bem armados, e foram oferecer-se a Afonso de Albuquerque para o ajudarem na conquista?