– Deveras? – espanta-se Jorge Mendes, rogando-lhes: – Vós, que haveis tomado parte na conquista, falai-nos desse feito do Terríbil, pois foi antes do nosso tempo na Índia.
– Sim, por vossas vidas, contai-nos a tomada de Malaca! – secundam outras vozes.
Vicente troca um olhar de entendimento com Calvo e, sorrindo, diz-lhe:
– Comece vossa mercê que esteve nos dous cometimentos e eu irei metendo a minha colherada nos sucessos em que tomei parte.
– Seja então, meus amigos, mas terei de me socorrer da memória do Vicente, que a minha já começa a variar. A nossa armada chegou a Malaca na tarde do dia um de Julho do ano de mil quinhentos e onze, com todos os navios embandeirados e apavesados, a tanger trombetas, dando salvas de grossa artilharia, que causaram grande terror ao povo, assim como ao rei Mahamed e aos mouros do seu conselho, apesar de já nos esperarem.
Nesse mesmo dia, o mensageiro d’el-rei, veio a bordo da capitânia onde foi recebido por alguns cavaleiros fidalgos, estando Afonso de Albuquerque sentado numa cadeira de espaldar, guarnecida de seda e ouro, com todos os capitães da frota, vestidos de paz e de guerra, sentados segundo a sua qualidade em bancos cobertos de alcatifa. A restante gente de armas fazia guarda de honra, de pé, em boa ordem.
Como sempre que queria atemorizar mouros ou gentios, o governador apresentava-se com grande pompa, quer nos trajos quer nos gestos. A barba muito alva, que ele jurara só cortar em Ormuz sobre o corpo morto de Coja Atar, chegava-lhe abaixo da cintura e ele prendia-a com um nó ao cinto. Tinha um ar tão majestoso que o Tuão lhe fez as suas zumbaias mais cerimoniosas, como se ele fora o imperador da China, dobrando por três vezes o corpo até o rosto tocar nos joelhos. Só então Albuquerque se pôs de pé para o receber com boas palavras, mas logo se tornou a sentar, mandando pôr sobre a alcatifa umas almofadas de seda onde o mouro se acomodou e, deste assento mais baixo, lhe deu a mensagem de Mahamed.
– El-rei meu senhor vos manda perguntar para que é tamanha armada como a que trazeis. Deseja saber se vindes para a guerra ou para a paz, porque ele outra cousa não deseja senão amizade com o rei de Portugal. – E mentia com quantos dentes tinha na boca ao acrescentar, manhoso: – Por essa razão mandou cortar a cabeça ao seu bendara, como castigo pela morte dos cristãos da feitoria, cousa em que ele não teve nenhuma culpa.
Admirávamos o esforço de Albuquerque em conter a sanha e as ganas de atirar o mouro fementido borda fora da Frol de la Mar.
– Dizei a Sua Alteza que lhe peço a mercê de me mandar entregar os cativos e pagar toda a fazenda que lhes foi tomada pelo bendara. Então falaremos em pazes.
– El-rei meu senhor promete que quando se concertarem as pazes, vos mandará os cristãos com tudo o mais que vos foi tomado.
– Assi não pode ser! Não hei-de fazer nenhuma concertação antes de ter os cativos com toda a sua fazenda. Não sairemos daqui sem darmos conclusão a este negócio, porque a minha armada não vem buscar carga, vem para fazer guerra aos que não quiserem ter paz connosco.
Mahamed entendeu a ameaça, porque logo começou um vaivém infindável de mensagens sem nenhuma conclusão, uma situação insuportável que Albuquerque sofria com uma paciência de Job, de que ninguém o julgara capaz, para conseguir a libertação do feitor e dos seus homens. O Terríbil entendia bem as causas da desfaçatez do rei: a cidade, de cem mil habitantes, era defendida por fortíssima artilharia, um exército de trinta mil guerreiros, além de uma hoste de elefantes de guerra e uma armada de inúmeros navios bem providos de bombardas de vários tipos. Para Mahamed a desproporção entre a sua força e a dos portugueses era semelhante ao confronto entre um elefante e um moscardo, portanto, quase desprezível.
Araújo sabia de tudo o que se passava no conselho d’el-rei, por Nina Chetu, um mercador seu amigo, e tomava conhecimento dos trabalhos de defesa por outra devotada espia. Os portugueses cativos viviam amancebados com mulheres da terra que, condoídas da sua triste condição os tinham socorrido por caridade, acabando por ganhar vontade àqueles homens de outra religião e raça que as tratavam melhor que os naturais, adorando-as como a deusas e, no leito, tomando-as sempre com uma paixão insaciável, fruto talvez do desespero ou da solidão. E elas tinham-se entregado a esse bem-querer com a devoção inteira e cega, própria da natureza das mulheres malaias, espiando por sua conta os homens de guerra, seus patrícios, para darem aviso aos amantes de tudo o que logravam saber, não estimando perder por eles a vida em tão arriscada empresa.
O feitor recomendava ao governador que se precavesse contra as manhas d’el-rei, pois a traição e a perfídia estavam-lhe na massa do sangue. Naquela terra os monarcas tinham um reinado de pouca duração, sucedendo-se uns aos outros a um ritmo muito mais rápido do que em qualquer outra nação do mundo, por ser uso matarem-se por cobiça, de tal modo que os irmãos não se fiavam uns dos outros. O mesmo faziam as gentes do povo que se matavam com dardos empeçonhados das suas zarabatanas, com que fingiam andar a caçar, lançando-as de tocaia aos inimigos.
Deste modo subira ao trono Mahamed que, para atalhar conspirações e revoltas, se apressara a apunhalar o seu meio-irmão, o legítimo herdeiro Celeimão, assassinando igualmente o seu filho e sucessor por este lhe ter pedido dinheiro para seus gastos, dando ainda a morte sem razão a outros dezassete parentes, de quem recolhera a imensa fazenda, tomando-lhes por mancebas as filhas e esposas de maior preço, que seriam cinquenta. Depois da queda de Malaca, os mouros diziam que os cristãos lhe tinham tomado o reino como castigo dos céus pelos seus grandes pecados.
Nada se fazia naquela terra sem licença sua ou do bendara, todos estavam sujeitos aos terríveis castigos e penas de morte que a sua crueldade determinava, a que apenas escapavam os nobres que podiam escolher a morte pelo cris, às mãos de um parente próximo. A gente baixa era lançada sobre estrepes, cozida em água a ferver, ou assada e comida por uma raça de gentios de Aru ou de Bata, que o rei mandava vir de Samatra para esse fim.
Afonso de Albuquerque escreveu a Araújo, dizendo-lhe que temia acometer Malaca porque poria em grande risco a vida dos cativos, mas a corajosa resposta do feitor ajudou-o na decisão. Convocou os capitães e os fidalgos principais da armada para conselho, leu-lhes as cartas que escrevera ao rei de Malaca e a Araújo, assim como a resposta que recebera do feitor, pedindo-lhes para se pronunciarem sobre se deveria ter mais alguns cumprimentos com o dissimulado rei Mahamed ou, se pelo contrário, deveria assaltar a cidade sem mais demora.
136 Nas Filipinas.
137 Peregrinação, capítulo XC.
XIX
O cão ladra à cauda do elefante
(malaio)
Carta de Afonso d’Albuquerque a Mahamed, rei de Malaca:
ElRei Dom Manuel meu Senhor mandou a este vosso porto um Capitão com certas naus que vinham mais carregadas de mercadorias, que de gente, com desejos que tinha de assentar paz, e amizade convosco; e sobre vosso seguro, e do vosso Bendara, haveis roubado toda a fazenda, e matado, e cativado os Portugueses, como vos já tenho dito, e trabalhastes quanto pudestes por lhe tomar suas naus, se milagrosamente os Nosso Senhor não livrara.
Sabei certo se me logo não mandais entregar os Cristãos, e toda a fazenda, que tendes tomada, vos hei-de destruir, com tomar-vos a vossa Cidade. Se os houvésseis tomado de boa guerra ou por represália, então eu vo-los resgataria pesados a ouro, mas pois os cativastes com traição logo mos haveis de entregar com boa paz, que por isso assentarei convosco.
Porque se o não fizerdes, os Portugueses estão tão doudos que os não posso ter e há na armada irmãos e parentes dos cativos que juram de os tomar resgatados com fogo e sangue; e logo vos querem ir buscar dentro em vossos paços.
Tomo a Deus por Juiz, que vós, e vossos Governadores sereis causa da vossa destruição, pois por conselho dos Guzarates, que são imigos capitais dos Portugueses, não quereis tomar conclusão nenhuma de paz comigo. Pelo que vos digo que hajais bom conselho e me mandeis resposta sem engano de falsidade, porque eu tenho um grande adivinhador, que me deu o rei de Cochim, o qual me descobre todas as traições.