E dou-vos por sinal disto assi ser, mudar o anel de um dedo para o outro138.
Calvo faz uma pausa para beber um trago de vinho e refrescar a boca seca pelo longo relato. Vicente Morosa aproveita o descanso para acrescentar:
– Nas suas rebolarias, o rei Mahamed fazia sair todos os dias do rio uma armada de lancharas139, com muita gente de peleja, que dava uma surriada de artilharia às naus e se tornava a recolher. Albuquerque mandou Fernão de Andrada com dez batéis armados dar-lhes rebate ao longo da ribeira com fogo de berços e falcões.
– O governador precisava de conhecer o poder e modo de defesa de Malaca – retoma Calvo –, ver onde tinha assentado a sua artilharia e quanta gente havia para a defender.
A cidade acordou estremunhada, com os seus moradores a fugirem de casa num grande tumulto, levando os filhos e o fato às costas, tão desatinados de terror que não acertavam por onde iam. A estratégia de Albuquerque deu frutos, pois ele viu que acudia à defesa muito mais gente da povoação dos mercadores, a norte, do que da banda da mesquita, a sul, onde estavam as casas d’el-rei. A ponte que ligava as duas margens da cidade era o lugar mais fortificado, pois ali acudira Mahamed com os seus elefantes e a sua tropa de escol.
A multidão acorreu aos paços, com grandes prantos e clamores. Mahamed, temendo o levantamento do povo, deu-se pressa em soltar os portugueses e enviá-los aos batéis da armada com o recado de que obedeceria ao governador em tudo o que ele lhe mandasse. Rui de Araújo e os companheiros foram embarcados em almadias que remando debaixo de fogo com grande perigo, lograram chegar-se aos pelejadores, com muitos acenos e brados de “Paz! Paz!”.
Os capitães, reconhecendo-os, deram ordens de cessar-fogo, capearam aos navios para que fizessem o mesmo; o tumulto das bombardas cessou nesse instante e os marinheiros, saudando os cativos com grande alegria, recolheram-nos nos batéis para os levarem à Frol de la Mar, a nau capitânia, onde o governador abraçou cada um deles, com lágrimas de alegria, e a Rui de Araújo com particular satisfação:
– Temi muito pelas vossas vidas. Mahamed é fementido e manhoso como uma raposa, por nada vos queria soltar.
– Cuidei que desta vez íamos morrer – respondeu-lhe o feitor, chorando de gratidão. – Os guzarates foram os que mais nos perseguiram, meu senhor, com promessas e tormentos para renegarmos a nossa Fé. Alimentavam a desconfiança d’el-rei contando-lhe os males que, segundo eles, os nossos têm feito por toda a Índia. Se não fora o socorro de Nina Chetu que pagou muitas peitas aos nossos algozes e nos mitigou a fome, nenhum de nós teria escapado com vida.
Albuquerque passou a mão direita pela comprida barba, de uma alvura de neve, segurou-a entre os dedos como um rosário e prometeu-lhes:
– Juro-vos, por estas minhas barbas, que deles tomareis dura vingança, já que não é possível concertar a paz com el-rei.
Visto e sabido tudo o que lhe convinha para a sua empresa, Albuquerque convocou novo conselho, mas, antes de começar a tratar dos negócios da guerra, pediu aos seus oficiais para receberem os capitães chins que lhe vinham agradecer a devolução dos juncos e o salvo-conduto para saírem do porto de Malaca. Os visitantes entraram com os línguas, fazendo as suas zumbaias de cortesia e o governador recebeu-os de pé, com mostras de grande amizade.
– Há muito tempo que o rei de Malaca nos tem retidos – falou o capitão Pulata que chefiava a embaixada – e não nos deixa partir, porque quer usar as nossas gentes nos navios da sua armada, em guerra contra o rei de Daru. Graças à vossa chegada, ficou muito ocupado em fortalecer a cidade, deixando de nos vigiar tão apertadamente, pelo que todos os nossos homens, às escondidas, já recolheram aos juncos. Podes usá-los como soldados ou matalotes e a nós como teus capitães nesta tua empresa.
Ao ouvirem a oferta do chim, os portugueses soltaram exclamações de surpresa e agrado, calando-se quando ele acrescentou:
– Meu senhor, como amigos te dizemos que olhes bem o que vais fazer, porque a cidade está muito fortificada. Devias sujeitá-la pela fome, tolhendo-lhe os mantimentos que lhe vêm de Java, pois de outro modo, sendo vós tão poucos a vitória é muito duvidosa. O rei proveu-se de infindas munições, tem vinte mil homens de armas, naturais da terra e jaus, sendo dez mil deles muito bons de guerra, bem armados de espadas e escudos que lhes deram os guzarates. Conta também com inúmeros frecheiros turcos, rumes, coraçones e persianos, além dos seus elefantes de guerra.
– Fico-vos muito agradecido pelo conselho de boa amizade, e quer tenhamos paz quer guerra com el-rei, quedai seguros de que vos mandarei restituir os juncos que ele vos tomou. Por ora, estamos determinados a cometer este feito tão necessário à nossa honra e, embora o poder d’el-rei de Malaca seja grande, nós não temos medo a nada e já estamos acostumados a pelejar com elefantes.
– Se o tentares, senhor – volveu o chim –, toma muito cuidado no desembarque da tua gente, porque por fora das tranqueiras e pela praia há muitas covas cobertas com palha, armadilhadas com pólvora e estrepes140.
– Rogo-vos muito que espereis mais alguns dias, para assistirdes à tomada de Malaca e levardes notícia a el-rei da China de tudo o que aqui se passar. Folgarei muito, se quiserdes ir todos no meu batel para ver de perto o modo de pelejar dos portugueses, o grande ânimo com que hão-de acometer a cidade.
– Assi faremos. Todavia, pesa-nos que não nos permitas servir-te nesta empresa.
– Se recuso a vossa oferta, que muito me honra, é por medo de vos causar dano, se este feito não nos correr de feição e Mahamed quiser vingar-se. Rogo-vos, todavia, que me empresteis as vossas barcas para o desembarque da minha gente.
– Contai com elas. Pedimos-te também licença para partir e volver à nossa terra, com a promessa de que, se tomares Malaca, volveremos todos aqui, carregados com muitas mercadorias.
Após a saída do estranho bando, Albuquerque deixou de sorrir, ficando por momentos em silêncio, que ninguém ousou interromper.
– Estou muito afrontado com o que aqui se passou. Os chins acham esta nossa empresa duvidosa, por sermos nós poucos e os de Malaca muitos. Para me desafrontar estou determinado a acometer a cidade antes deles partirem para a China e a fazer aqui uma fortaleza que se possa suster no futuro, que é o que mais cumpre ao serviço d’el-rei nosso senhor. Sem a fortaleza, de pouco proveito nos servirá o muito que aventurámos para a tomar. Malaca é a escápula principal deste mundo, aqui vêm os mouros de todas as partes, sobretudo do Cairo e Meca, buscar especiarias, pondo as nossas naus em risco. Olhai todas estas cousas e dizei-me o que devo fazer, porque se vos parecer mal fazer-se a fortaleza, não hei-de aventurar a vida de um grumete por quantos mouros houver em Malaca.
Foi longa a prática dos capitães e dos fidalgos, porque sempre há pareceres contrários entre os portugueses, qualquer que seja o assunto; só com muita paciência ou, por vezes, decidindo à revelia dos seus pareceres é que o governador podia agir. Concordaram, por fim, com algumas reservas, que se acometesse a cidade para a conquistar e fazer a fortaleza. Concluídas as assinaturas, Albuquerque declarou-lhes:
– Atacaremos depois de amanhã, vinte e cinco de Julho, dia de Santiago. – Soltou uma risada e o seu rosto pareceu rejuvenescer: – Haverá melhor dia do que este para dar santiago nos mouros? Ceai, repousai até à meia-noite e esperai que eu vos faça sinal com um tiro de berço, para começarmos a dar-lhes bateria de pelouros grossos. Acometeremos com a preia-mar, às duas da manhã. António de Abreu irá com o junco abalroar a ponte, ajudado por Duarte da Silva numa galé e por Simão Afonso numa caravela. Tomadas as vossas tranqueiras acudireis todos ao meio da ponte, onde vos direi o que haveis de fazer, pois como ainda não vi a cidade, não posso determinar já as nossas acções. Levarei também duas barcas com peças grossas de artilharia para fazerem fogo sobre ambas as partes da angra e guardarem as costas dos nossos homens que estiverem a fazer as tranqueiras.