– Eu desembarcarei do cabo da ponte onde estão a mesquita e as casas d’el-rei – secundou D. João de Lima –, com Gaspar de Paiva, Fernão Peres de Andrada, Sebastião de Miranda, Fernão Gomes de Lemos, Vasco Fernandes Coutinho, com o corpo da gente da armada que nos foi destinado.
– Logo que as estâncias forem entradas, acudiremos ambos ao meio da ponte, para aí nos fazermos fortes. Ou, se vos apartardes, vinde ter aonde virdes a minha bandeira. Rui de Araújo, quando nos virdes pelejar nas tranqueiras, ide com António Fernandes, por ambas as partes da cidade, cada um com vinte rocas de fogo, onde melhor vos parecer, abrasai quanto puderdes. António é um cafre da minha geração e meu homem de confiança, podeis contar com ele para tudo o que vier. Ide descansar e preparar-vos.
Calvo, exausto, faz uma pausa. Ninguém o interrompera com perguntas, presos da sua narrativa e Vicente não achara necessário acrescentar fosse o que fosse, pois, ao contrário do que dissera, o velho mostrara uma memória de cronista para citar nomes, sucessos e datas.
– Estou sem fôlego, mas Vicente pode narrar-vos o primeiro assalto à ponte, em que tomou parte – e acrescenta, sorrindo para Valentim –, ao lado do valoroso Pedro de Alpoim, capitão da nau Santa Catarina e vosso parente.
– Nisso farei muito gosto, mas terá de ser outro dia, que caiu a noite sem darmos conta, tão presos nos teve vossa mercê com a sua história. São horas de volver ao nosso abrigo, que os tempos que correm são de medos e desconfianças e eu não quero ser tomado por um espia dos tártaros.
138 Comentários do Grande Afonso de Albuquerque, parte III, de Brás de Albuquerque.
139 Tipo de embarcação asiática que podia ser usada em combate.
140 Puas e estacas de ferro ou madeira aguçada, cravadas no fundo de covas, usadas para armadilhas de caça e de guerra.
XX
Onde há uma campina farta, há sempre gafanhotos
(malaio)
Malaca Conquistada pelo Grande Afonso d’Albuquerque, livro sétimo
XXXV. Chegados à distância, que podia
Fazer emprego, e efeito rigoroso
Nas imigas naus a artilharia,
Fogo ao salitre dão, que arde espantoso:
Nos ardentes pelouros morte fria
Se envolve, e logo se ouve um lastimoso
Som confuso de gritos, e gemidos
Dos que morrendo estão, e dos feridos.
XXXVI. Bravos os inimigos responderam
Também a artilharia disparando,
E, chegando a bordar, os receberam
Pedras, fundas, e dardos mil tirando.
Cobertos dos escudos remeteram
Os fortes Portugueses e pegando
Em várias partes fogo, num momento
Sobem chamas e fumo pelo vento.
XXXVII. Entrou o medo, confusão, e espanto
Nos Guzarates míseros, cercados
De fogo, e fumo, um lastimoso pranto
Aos ares levantando acobardados:
Vendo seu fim alguns em rigor tanto,
De outro remédio já desesperados,
Saltam por entre as chamas acendidas,
Procurando no mar salvar as vidas.
XXXVIII. Mas já também no mar a imiga forte
Lhes tinha aparelhada morte dura;
Acabam nele às mãos da gente forte,
Que a ferina treição vingar procura:
Preza os imigos já da justa morte,
Dão-lhes o mar, e fogo sepultura:
Movem contra a Cidade os vencedores,
Querendo executar novos rigores.
XXXIX. Bem como o bravo touro, magoado
Do farpão duro, segue ao que o feria,
E apenas morto deixa o moço ousado,
Quando outro logo segue ardendo em ira:
Tal Afonso iracundo, e indinado
Trás de um castigo a dar já outro aspira;
Com a Cidade belicoso cerra,
Fazendo a ferro, e fogo dura guerra.
(Poema heróico de Francisco de Sá de Menezes, 1634)
Os nove degredados não puderam ouvir tão cedo o resto do relato da conquista de Malaca, porque na muralha de Quansy soavam constantes alarmes causados pelos assaltos e incursões dos tártaros da fronteira aos lugarejos dos arredores, para roubarem gado ou cereais, ameaça confirmada pelos movimentos das hordas observados pelos espias que os chins mantinham sobre eles mesmo em tempo de paz. Com a população em sobressalto, os portugueses encontravam mais tarefas para fazer e estiveram ocupados duas semanas, até a cidade sossegar e regressar à mesmice do seu quotidiano.
Quando se apresentam de novo em casa de Vasco Calvo, felizes por poderem levar-lhe presentes de comida, terminada a ceia, não há tempo para cantorias, de tal modo estão ansiosos por ouvir o resto do relato do anfitrião, mas ele cede a vez ao camarada de armas:
– O Vicente melhor vos contará as peripécias do primeiro desembarque em que participou do princípio ao fim. Depois eu vos direi como se passou a peleja com os elefantes.
Ninguém se opõe e o companheiro retoma a história no ponto onde Calvo a deixara:
– Duas horas antes de amanhecer o dia de Santiago, estando já toda a gente metida nos batéis e nas barcas cedidas pelos chins, os capitães foram até à Frol de la Mar, de cuja amurada Frei Domingos de Sousa fez confissão geral e deu a absolvição aos combatentes. O governador mandou soar as trombetas e todos os barcos se dirigiram para terra, sofrendo alguns danos da forte artilharia inimiga, que assentada de cada lado da ponte atirava sem cessar, de modo que toda a praia ficou coberta de fumo e o mar parecia ferver.
Entrincheirados nas estâncias, esperavam-nos muitos mouros bem armados com gente da terra. Era a cilada de que em boa hora Rui de Araújo nos havia prevenido, contando os infiéis que nos fôssemos encravar nos estrepes. Eu e muitos outros que desembarcámos primeiro, ajudados pelos escravos dos capitães, tomámos os paveses que nos escudavam das flechas e, deitando-os no chão, fizemos um passadiço por onde os nossos puderam chegar às tranqueiras, sem tombarem nas covas ou rebentarem as minas. Ao toque de tambores e trombetas, de ambas as partes da ponte, acorreram batalhões de mouros a defenderem a entrada da cidade, uns armados de zarabatanas e arcos com flechas ervadas, outros com escudos, lanças e umas canas compridas de ferros em voltas como línguas de fogo, que nos faziam grandes estragos.
A peleja foi dura, porém apertámos tão fortemente com o inimigo que conseguimos entrar as tranqueiras, onde matámos, entre muitos, o Tuão, seu principal comandante, com dois capitães. Os mouros, vendo-se sem os seus cabeças, lançaram-se ao rio para salvarem a pele, mas os nossos matalotes que estavam nos batéis acudiram logo e acabaram de os matar.
Alguns dos nossos ainda perseguiram outros fugitivos além da ponte, quando da banda da mesquita lhes acudiu Mahamed com o seu filho Aladim e o rei de Pão, que viera a Malaca para o casamento da sua filha com o príncipe. Comandavam os seus elefantes de guerra e forçaram os mouros a tornar às estâncias que haviam abandonado. D. João de Lima, Fernão de Andrada com os da sua companhia, sem temerem os elefantes, lançaram-se contra eles com tão grande ímpeto que se assenhorearam da mesquita, fazendo recuar o rei.
– A partir de agora, amigo Vicente – interrompe Calvo –, posso revezar-vos e contar a batalha com os elefantes.
– Fazei-o em boa hora, que já tenho a gorgomileira seca! Assi, os nossos companheiros conhecerão toda a história, porque do que se passou da banda da mesquita, eu só sei o que ouvi contar.
Os dois veteranos das primeiras conquistas da Índia, tal como Fernão e os restantes companheiros, perdiam a noção do tempo e do lugar onde se achavam, esqueciam as misérias passadas, presentes e futuras, ao evocarem a portentosa empresa de Afonso de Albuquerque, o Terríbil, dos seus capitães, de muitos soldados e marinheiros iguais a eles próprios, que trouxera aos portugueses o domínio de todas as derrotas comerciais do Oriente.