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– Pois eu estive lá e fiquei vivo para o contar – riu-se o anfitrião, feliz por reviver a sua aventura: – Tomada a tranqueira com muitas panelas de pólvora, ao ouvirmos D. João de Lima e os capitães bradarem Por Santiago e Portugal!, corremos pela rua principal atrás dos fugitivos, indo dar à mesquita onde se tinham acobertado muitos mouros bem armados, que D. João de Lima só a duras penas logrou pôr em fuga.

Não chegámos a saudar a vitória porque vimos avançar contra nós el-rei Mahamed com a sua tropa de escol e dez elefantes de guerra, com grandes espadas atadas nos dentes e castelos em cima dos lombos cheios de frecheiros.

O esquadrão das alimárias era medonho, ao arremeter contra nós com bramidos de fazer gelar o sangue à gente miúda que começou a recuar, havendo já doze ou quinze homens mortos e muitos feridos. Albuquerque, tendo aviso do que se passava, veio pôr-se com a sua gente na boca da rua e enviou em nosso socorro Fernão de Lemos com os seus homens.

Como não saíamos das tranqueiras da mesquita, Mahamed deu ordem aos cornacas para arremeterem com os elefantes contra os nossos reforços, o que eles fizeram, carregando com grande ímpeto de trombas erguidas, bramindo como feras demoníacas sobre os homens que vinham na dianteira. Fernão de Lemos e Vasco Coutinho, com o ânimo dos valentes que pegam a morte pelos cornos, deixaram-se estar quedos, com as lanças na mão, até poderem visar o elefante d’el-rei e Fernão atirou-lhe uma lançada que falhou os olhos mas acertou em cheio dentro da orelha.

O bicho soltou um bramido de dor e deu meia-volta para fugir, apesar dos esforços do seu cornaca para o fazer avançar, criando grande tumulto em seu redor, ocasião que Coutinho aproveitou para lhe meter uma lançada pela barriga. Ensandecida, a fera colheu o cornaca com a tromba e atirou-o pelos ares, carregando de seguida sobre os outros elefantes, desbaratando-os e criando a desordem entre os nossos inimigos.

Com a nossa ajuda, a falar verdade, porque, nas tranqueiras quando vimos os elefantes lançarem-se sobre o esquadrão de Fernão de Lemos, saímos com D. João de Lima em seu socorro; guardando-nos das suas trombas e presas armadas, começámos a feri-los também. Acossados, os monstros puseram-se em fuga para os estábulos, esmagando quantos malaios e mouros achavam pela frente.

Ao ver a sua montada sem governo, Mahamed saltou em terra, pelejando com bravura, durante algum tempo, até ser ferido numa mão e só não foi feito cativo porque os nossos não o conheceram. O filho logrou resgatá-lo e retiraram-se com o rei de Pão para um outeiro onde estavam as suas casas, seguidos pelas suas gentes para ali se fortificarem. Quando íamos persegui-los, o governador fez soar o aviso para não passarmos além da ponte e tornarmos atrás, às estâncias que tínhamos tomado.

– Albuquerque apercebera-se da grande quantidade de gente da cidade que atacava os nossos – acrescenta Vicente, vendo o seu anfitrião terminar o relato – e receando que acabassem por nos desbaratar, fez-nos recolher a todos à ponte. Eram cerca de duas horas depois do meio-dia, o sol queimava como lume, ninguém tinha comido desde a véspera e estávamos todos exaustos de tanto pelejar e acometer tranqueiras. Afinal, a conquista de Malaca não era tão fácil como Araújo nos tinha prometido, custara-nos muitas vidas.

– E os feridos nem tinham conto! – torna Calvo. – Albuquerque fez cavaleiros aos que mais se haviam avantajado na batalha, passando neste acto algumas horas para deixar descansar as tropas. Vendo que, além das baixas sofridas, havia gente a desertar do seu posto para ir roubar as casas da cidade, mandou tocar para todos se irem embarcar e tornar às naus. Ordenou ainda a Dinis de Melo e a Pedro de Alpoim que fossem com a gente do mar levar aos batéis setenta e duas bombardas que se tinham tomado na ponte, permitindo apenas o embarque das mercadorias que se tinham roubado em duas casas d’el-rei que serviam de armazém. Era quase sol-posto quando o último de nós embarcou, debaixo dos tiros dos inimigos que retomavam as estâncias da ponte, no clarão da mesquita que tínhamos abrasado141.

– Neste feito contámos vinte e oito mortos – lembra Vicente –, quase todos da peçonha dos dardos e flechas, mais de sessenta feridos, de que depois morreram alguns; dos inimigos foram tantos os mortos que lhes perdemos o conto. Alguns capitães obedeceram muito contrariados à ordem de retirar, por acharem errado não se acabar de conquistar a cidade.

141 Comentários do Grande Afonso de Albuquerque, parte III, de Brás de Albuquerque; História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses (1552-1561), de Fernão Lopes de Castanheda.

XXI

Quem pouco viu, muito se maravilha

(chinês)

Da Oração que Camilo Pórcio fez ao Papa Leão X, em louvor da tomada de Malaca:

Já os Portugueses com uma animosa alegria se chegavam ao muro, e a artilharia da banda do mar disparava, quando os da Cidade começaram de enfraquecer, e deixadas suas estâncias (que pouco tempo sustentaram), começaram de fugir: seguindo-os os Portugueses com esforçados corações, e entrando em seu alcance dentro na Cidade, chegaram ao meio dela, onde em uma ponte, que sobre um rio por onde entram navios, que pelo meio da Cidade corre, estava, tinha o Rei feito sua defensa, e posto a força de sua gente; e fortalecendo mais esta estância, recolheu nela os que fugiam; e por o rio se não poder passar a vau pelos Portugueses, se fez forte na ponte. Ali se azedou mais a peleja, todavia os Portugueses favorecidos da esperança, e os imigos cortados do medo das armas Portuguesas, tão rijamente apertaram com os infiéis, que não estimando as armas deles, nem seus alifantes com castelos de frecheiros, nem a dificuldade do vau, com ferro abriram caminho por meio dos imigos, dos quais uns se metiam com desesperação pelas armas Portuguesas, outros se deitavam ao rio pera se salvarem; finalmente em cabo de poucas horas fugiram todos, e o Rei com eles, indo ferido. Foi entrada a Cidade e saqueada, muitos imigos mortos: foi nela achada muita quantidade de ouro e prata, acharam-se nela muitos aparelhos e munições de guerra, entre as quais foram duas mil peças de artilharia; foram tomados sete alifantes costumados à guerra com seus castelos e encaixados deles tecidos de ouro, e muito ricamente guarnecidos, de maneira que não somente os homens, mas os brutos daquele Reino ficaram obedecendo ao Império Português.

Feita no Sacro Palácio, em Roma, no mês de Outubro do ano de mil quinhentos e treze142.

Vicente retoma o desfiar das suas memórias:

– Depois de toda a gente ter recolhido aos navios, os capitães foram nos seus batéis à capitânia perguntar a Albuquerque por que razão não quisera seguir a vitória, quando já tinham tomado as tranqueiras. Sem mostrar zanga no rosto ou na voz, ele deu a todos muitos louvores pelo ânimo que haviam mostrado em combate, dizendo-lhes, se bem me lembro e Calvo me há-de corrigir se me enganar: – Senhores, bem vejo como a vontade de vossos corações e as obras de vossas mãos são dignas de grandes merecimentos. Contudo, muito vos peço por mercê, que vos sofrais e me deixeis ir com esta cousa de pouso em pouso, porque é mui grande para logo arrematar, visto sermos poucos e termos muitos contrairos. Tenhamos confiança na paixão de Nosso Senhor, que por sua misericórdia porá esta cidade em nossas mãos, se houver esta empresa por seu santo serviço. E eu queria que ela fosse o mais barato que pudesse em sangue de portugueses.

– Foi assi mesmo, sem tirar nem pôr! – aplaude Calvo. – Os capitães ficaram comovidos com a resposta do governador, caindo na boa razão e volvendo aos navios a reparar os danos e aparelhar as suas gentes para novo assalto. Vossa mercê lembra-se da troca de recados que então se passou entre el-rei Mahamed e Albuquerque?

Vicente solta uma risada.

– Até teve graça! Mahamed tinha o topete de se mostrar escandalizado por Albuquerque lhe fazer guerra, depois de ele lhe ter entregado os cativos, que eram o pomo da discórdia.