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PERGUNTA: Habeas corpus é uma ordem judicial que exige a presença de uma parte perante uma corte ou um juiz. Esse termo em latim pode ser traduzido como...
RESPOSTA: Que tenhas o teu corpo.
Quando acordo na manhã seguinte, estou com tanto frio que, por um momento, acho que o Sr. Harbinson me pôs para fora durante a noite. Por que será que, quanto mais pomposas são as pessoas, mais frias são as casas em que moram? E não é só o frio. É a sujeira também: pelos de cachorro, livros empoeirados, botas enlameadas, a geladeira cheirando a leite estragado, queijo mofado e legumes apodrecidos da horta. Juro que a geladeira dos Harbinson deve ser um solo muito fértil. Provavelmente, aparam a grama dela no verão. Mas talvez isso defina o verdadeiro e autêntico status da classe média alta — a capacidade de ser fria e suja com total autoconfiança. Isso, além dos lavabos em todos os quartos da casa. Lavo o rosto com água gelada, devolvo o exemplar de Lace à estante e desço.
A Radio 4 soa alto nas caixas de som escondidas e Alice está deitada no sofá, lendo debaixo de um cobertor estampado com cachorrinhos.
— Bom dia! — cumprimento.
— E aí? — responde ela, entretida com o livro.
Tento me espremer ao lado de um cachorro.
— O que você está lendo? — pergunto, numa voz divertida. Ela me mostra a capa. — Cem anos de solidão... Parece a minha vida sexual!
— Dormiu bem? — pergunta Alice, quando percebe que eu não vou embora.
— Muito bem, obrigado.
— Sentiu frio?
— Ah, só um pouco...
— Porque você está acostumado com aquecimento central. É muito ruim aquecimento central. Embota os sentidos...
Como que para ressaltar o argumento, o Sr. Harbinson entra na sala, calmo e indiferente. Nu.
— Bom dia! — diz, pelado.
— Bom dia! — Mesmo encarando fixamente a lareira, dá para perceber que é um homem bem peludo. Ou então está usando um macacão de angorá.
— Tem chá na chaleira, Alice? — pergunta, pelado.
— Sirva-se.
O Sr. Harbinson abaixa-se ao lado dela, serve-se de uma xícara de chá e sobe as escadas três degraus a cada passo. Quando me sinto seguro para olhar ao redor, pergunto:
— Então... Isso é... normal?
— O quê?
— Seu pai nu.
— Claro!
— Ah!
— Você não está chocado, está? — pergunta, estreitando os olhos.
— Bem, quer dizer...
— Você deve ter visto o seu pai pelado.
— Bem, não. Desde que ele morreu, não.
— Não, é claro, desculpa, esqueci, mas antes de ele morrer, você deve ter visto seu pai pelado.
— Hum, talvez... Mas não é como me lembro dele.
— E quanto à sua mãe?
— Meu Deus! Você anda nua na frente do seu pai?
— Só quando a gente está transando — responde ela, estalando a língua e revirando os olhos. — É claro que sim... Todos nós fazemos isso. Afinal, nós somos uma família. Meu Deus! Está surtando com isso, não está? Sinceramente, Brian, para alguém que diz ser moderno, você é muito quadrado. — Por um instante, vejo Alice como uma chefona, superior e maliciosa. E ela acabou de me chamar de quadrado? — Não se preocupe, Brian, eu fico vestida quando temos convidados.
— Oh, por favor, não se incomode comigo...
Alice sabe que estou forçando a barra e dá um sorriso hesitante.
— Só estou dizendo que acho que consigo lidar com isso.
— Hum... Será que consegue mesmo? — Alice lambe a ponta do dedo e vira a página do livro.
O café da manhã consiste em torradas de um pão caseiro que tem cor, peso, textura e gosto de argila. A rádio toca na cozinha também. Na verdade, até onde pude perceber, a rádio está em todos cômodos e parece ser impossível desligar, como as teletelas de 1984. Mastigamos e ouvimos rádio, e continuamos mastigando, e Alice continua lendo o seu livro. E já começo a me sentir infeliz. Em parte, por ser o primeiro sujeito a ser chamado de quadrado desde 1971, mas, principalmente, pela menção a meu pai. Como ela pode ter esquecido? E não gosto da maneira como estou falando dele na frente dos outros. Tenho certeza de que meu pai ficaria muito bravo de saber que está sendo usado pelo filho como matéria-prima para um monte de tiradas horríveis e superficiais e monólogos bêbados de autopiedade. A caça pelo Verdadeiro Eu está indo mal, e eu ainda nem escovei os dentes.
Então, saímos para uma longa caminhada na neve. Você não pode chamar a zona rural do Leste britânico de espetacular; é admirável, suponho, de uma maneira pós-nuclear, e a vista tende a ser a mesma não importa quão longe você ande — o que, na verdade, acaba derrotando o objetivo, mas, pelo menos, é coerente. Também é revigorante estar num lugar onde não se ouve a Radio 4. Alice me toma pelo braço e eu quase esqueço que a neve está arruinando as minhas novas botas de deserto de camurça.
Desde que entrei na faculdade, notei que as pessoas gostam de falar sobre os mesmos cinco tópicos principais: 1) Minhas notas nos exames; 2) Meu colapso nervoso/distúrbio alimentar; 3) Minha bolsa integral; 4) Por que é um alívio não ter entrado para Oxbridge; e 5) Meus livros favoritos. E é essa última opção a que escolhemos seguir.
— O melhor de todos já foi O diário de Anne Frank. Quando eu era adolescente, queria ser a Anne Frank. Não ter o mesmo fim, claro. Só viver humildemente em um sótão, lendo livros, escrevendo um diário, me apaixonando pelo garoto judeu pálido e sensível do sótão ao lado. Isso deve soar um pouco perverso, não é?
— Um pouco...
— Acho que é só uma fase pela qual todas as garotas passam numa certa idade: pensar em se cortar, vomitar e ser lésbica.
— Você já teve alguma experiência lésbica? — pergunto casualmente, quase em falsete.
— Bem, num internato, não tem muito como escapar. É quase que obrigatório: lesbianismo, francês e basquete.
— E até onde... você chegou?
— Você adoraria saber...
— Claro que sim, oras!
— Não muito longe, na realidade. Foi uma experiência muito superficial.
— Talvez esse tenha sido o problema! — Ela me dá um sorriso cansado. — Desculpa... Então... O que aconteceu?
— Acho que, simplesmente, não gostei. Sempre gostei muito de sexo com homens. Eu sentiria falta da penetração. — Continuamos caminhando um pouco mais. — E você?
— Eu? Ah, eu também sinto falta de penetração.
— Estou tentando falar sério, Brian — adverte Alice, socando meu braço com luvas de esqui. — Você já experimentou?
— Experimentou o quê?
— Bem, estou supondo que você já fez sexo com homens.
— Não!
— Sério?
— De jeito nenhum. O que faz você pensar isso?
— Só imaginei que tivesse acontecido.
— Você acha que sou afeminado? — pergunto. O falsete está de volta.
— Não, não afeminado. Além do mais, feminilidade não é um sinal de homossexualidade...
— Bem, não, claro que não.
— ...nem é uma coisa ruim, aliás.