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— Não, claro que não. Mas você falou como os meus amigos da escola. Só isso.

— Hum, acho que a dama é voluntariosa demais...

O negócio é mudar de assunto. Gostaria muito de continuar a falar sobre lesbianismo, mas me lembro de ela ter dito alguma coisa sobre se cortar. Eu deveria ter me ligado nisso.

— E quanto à... automutilação?

— Que automutilação?

— Você não disse que se cortava?

— Ah, só de vez em quando. Um grito de socorro, acho que é como chamam. Mais precisamente, um grito para chamar atenção. Fiquei um pouco deprimida na escola, um pouco solitária. Só isso.

— Estou surpreso... — comento.

— Sério? Por que isso surpreenderia você?

— Acho que não consigo imaginar você tendo motivos para se sentir deprimida.

— Você precisa superar essa visão de que eu vivo eternamente no meu berço de ouro, Brian, como um Ser Perfeito. Realmente, não é o caso.

Mas, naquela tarde, parece bem perfeita.

Quando estamos quase chegando em casa de volta da caminhada, travamos uma pequena guerra de bolas de neve no jardim, diferente de todas as guerras de bolas de neve em que já estive, pois ninguém está colocando cocô de cachorro ou vidro quebrado dentro das bolas de neve. Nem chega a ser uma guerra, por assim dizer, só uma suave luta afrodisíaca, uma brincadeira consciente que faz a gente se sentir como se estivesse sendo filmado, de preferência em preto e branco. Depois, entramos e sentamos no sofá perto da lareira para secar, e ela põe seus discos preferidos para tocar — muitos de Rickie Lee Jones e Led Zeppelin, e Donovan e Bob Dylan. Alice tinha só 16 anos em 1982, mas tem muito de 1971.

Fico observando enquanto ela pula pela sala ao som de Crosstown traffic do Jimi Hendrix, e, quando fica sem fôlego e se cansa de trocar discos a cada três minutos, Alice coloca um velho LP arranhado da Ella Fitzgerald e nos deitamos no sofá, lendo nossos livros e olhando furtivamente um para o outro de vez em quando, como Michael York e Liza Minnelli em Cabaré, e só falamos quando sentimos vontade. E, milagrosamente, durante quase uma tarde inteira, consigo não dizer nenhuma tolice, nada pretensioso, pedante, sem graça ou autodepreciativo, quebrar nem derramar nada, nem insultar ninguém, sem choramingar, resmungar, puxar o cabelo para trás ou futucar a cara durante a conversa. Na verdade, estou sendo a melhor pessoa que sou capaz de ser, e, se essa pessoa não é amável, pelo menos é gostável. Depois, por volta das 16h, Alice deita a cabeça no meu colo e adormece, e, pelo menos por aquele momento, parece verdade: ela é absoluta e inteiramente perfeita.

Estamos ouvindo Blue, lado 2, faixa 5, e Joni está cantando The last time I saw Richard was Detroit in ‘68 / and he told me all romantics meet the same fate someday / Cynical and drunk and boring someone in some dark cafe… e, quando o disco termina e a sala está em silêncio, a não ser pelo som das toras na lareira, e eu fico imóvel, quieto, observando enquanto ela dorme. Seus lábios estão ligeiramente abertos e sinto seu hálito quente na minha coxa; e concentro-me na pequena cicatriz em relevo no lábio inferior, branca no fundo vermelho. Sinto uma vontade irresistível de passar o polegar, mas ela está dormindo, então, fico só olhando, olhando e olhando e olhando. Mas, afinal, sou forçado a acordá-la, pois me preocupa que o calor e o peso de sua cabeça no meu colo me deixem muito estimulado, se é que você entende, e vamos encarar os fatos, ninguém gosta de ser acordado desse jeito. Não com aquilo na orelha.

E então, nem dá para acreditar, fica melhor ainda. Os pais dela saem para comer mais legumes no moinho de alguém em Southwold, e Alice e eu ficamos sozinhos na casa. Enquanto bebemos um monte de gim-tônica na cozinha, preciso confessar que fantasio nós dois vivendo juntos ali. Apagamos todas as

luzes da casa e jogamos palavras cruzadas à luz de velas, com dificuldade para enxergar as letras, e eu ganho por uma diferença bem grande, mas com modéstia e elegância. Aliás, com manha e espanto, que valem o triplo.

O jantar é risoto de arroz integral frito, que parece e tem gosto de risoto frito de restos da pá de lixo, porém fica minimamente comestível se você colocar bastante molho de soja. Além do mais, quando vamos comer, já estamos muito bêbados, falando ao mesmo tempo e rindo e dançando pela sala ao som das velhas músicas de Nina Simone, vendo até onde podemos escorregar de meias pelo chão de madeira. Depois, quando nos contorcemos num amontoado de risinhos, Alice de repente segura minhas mãos, sorri e diz com malícia:

— Você não quer subir?

Meu coração sai pela boca.

— Hum, depende... O que tem lá em cima? — pergunto, manhoso e divertido.

— Venha descobrir — e sobe a escada de quatro, gritando:

— No seu quarto, em dois minutos. Traga o vinho!

Concentre-se. Concentre-se.

Vou até a pia da cozinha, afasto a panela cheia de água, abro a torneira e molho o rosto, em parte para ficar mais sóbrio e em parte para ver se eu não estou sonhando, equilibro precariamente a garrafa de vinho e as taças quase cheias na ponta dos dedos e subo a escada.

Alice ainda não está no meu quarto. Então, vou até a pia e escovo os dentes rapidamente, atento ao som de passos para ela não me pegar e achar que eu estou antecipando alguma coisa. Quando percebo que ela vem vindo pelo corredor, enxáguo a boca, apago a luz e me acomodo na cama e fico esperando.

— Tcha-ram!

Ela está em pé na porta, braços abertos como uma vencedora do Oscar, mas não sei para onde eu deveria estar olhando. Seus seios talvez? Tenho a

esperança de que ela estará usando uma lingerie especial, mas depois vejo uma embalagem de papel de seda em uma de suas mãos e um pacotinho de plástico transparente na outra.

— O que é isso?

— Skank, cara. Skank da pesada. A gente não pode fazer isso lá em baixo. Michael fareja tudo. Essa história de pai boêmio só vai até certo ponto.

Ela pega um exemplar de Busy, Busy World, de Richard Scarry, da prateleira e começa a enrolar o baseado em cima do livro.

— E a sua mãe?

— Ah, é a minha mãe que consegue para mim, com um cara esquisito na cidade. O que eu posso dizer? É chato ser dona de casa. Ela precisa preencher os dias de algum modo, imagino. É um bagulho incrível. Incrííível!

Meu Deus! Ela está falando com um sotaque caribenho, uma mistura de Jamaica com Aldeburgh, e, pela primeira vez, eu me sinto constrangido por ela.

— Bagulho da pesada, cara! Erva da boa...

— Quer parar com isso, Alice, por favor? Ela acende e, puxando bem fundo a fumaça, retendo nos pulmões e revirando os olhos, sopra a fumaça na direção do abajur. E me pergunto se maconha é um afrodisíaco.

Alice me dá um olhar indolente e oferece o baseado, como se fosse um desafio. E é mesmo.

— Sua vez, Bri.

— Acho que não vou conseguir, Alice.

— Por que não? Por que você não quer ficar doidão, Bri?

Ela acha isso muito, muito engraçado, e, enquanto ela bate a cabeça na cabeceira, eu explico:

— Não, eu adoraria, só que nunca aprendi a fumar, nem tabaco. Sou um bobalhão, não consigo tragar, não sem estourar os pulmões. — Na verdade, fumar era uma das coisas que eu queria começar a fazer na faculdade, como ler Dom Quixote, deixar a barba crescer e aprender a tocar sax, mas ainda não cheguei lá.

— Você é estranho, Brian Jackson... — ela diz, de repente, muito séria. — Como você sabe não fumar? Fumar é, basicamente, o que eu faço melhor. Ou talvez a segunda coisa... — corrige, com outro olhar indolente. Afinal, talvez maconha seja mesmo um afrodisíaco. — OK, vamos tentar algo mais provocante. Mas, antes, um pouco de música! — Ela cambaleia até o destrambelhado toca-fitas de sua infância, com Alice escrito com corretivo, escolhe uma fita na gaveta da sua antiga mesa e aperta play. Acho que é Brian Cant, cantando A Froggy Went A Courtin.