— Brian?
— Oi! Vocês ainda estão aí!
— Sim, sim, estamos aqui.
— Pensei que vocês estavam em Bournemouth...
— Estávamos, mas... A vovó estava bem melhor e nós voltamos. Na verdade, acabamos de chegar.
— Entendi. Então, ela está bem?
— Está muito bem!
— Não fraturou a bacia?
— Não, só uns hematomas e... hã... o trauma.
— Que bom! Fico feliz em saber. Bem, não pelo trauma, mas de não estar em risco de vida...
Silêncio.
— Então...?
— Eu só queria dizer que deixei... Hã... Você sabe. As carnes... aí.
— Entendi. E onde está essa... carne?
— Na gaveta da mesa da cozinha.
— Ah, tá! Eu vou pegar.
— Melhor esperar até a sua mãe não estar perto, não?
— É claro.
— Então, a gente se vê na faculdade no ano que vem?
— Isso. A gente se vê no ano que vem!
Ela desliga e fico ali no corredor, olhando para o espaço com o telefone na mão.
Ouço a televisão na sala.
Que pessoa, com sobrenome começado com K, enunciou as três leis que descrevem exatamente o movimento dos planetas ao redor do sol?
— Joanes Kepler — respondo para ninguém.
Resposta certa!
Não tenho a menor ideia do que fazer agora.
22
PERGUNTA: Tendo origem no tanka de 31 sílabas, qual composição poética japonesa consiste em 17 sílabas arranjadas em versos de 5, 7 e 5?
RESPOSTA: O haicai.
A reação de Rebecca Epstein é rir. Ela se deita no meu futon, no meu quarto em Richmond Hill e dá muita risada, agitando os coturnos Doc Martens com um deleite sádico.
— Não é tão engraçado assim, Rebecca.
— Ah, é sim, com certeza!
Desisto e vou mudar o disco.
— Desculpa, Jackson, mas imaginar o casal escondido no depósito de madeira até você ir embora...
Isso faz com que ela comece a rir de novo. Então, decido ir até o quarto de Josh pegar mais cerveja caseira.
Fico mais 18 horas com minha mãe antes de decidir voltar para a faculdade. Explico mais uma vez que preciso de alguns livros específicos da biblioteca e ela dá de ombros, não acreditando muito, e, às 10 horas, já estou na escada da frente de casa recusando as mesmas comidas.
No trem de volta, começo a me animar um pouco. E daí que vou passar o Ano-novo sozinho numa república? Posso adiantar alguns trabalhos, ler, fazer longas caminhadas, tocar música tão alto quanto quiser. E amanhã, véspera de Ano-novo, vou lutar contra essa ridícula tradição que diz que devemos sair e ficar bêbados e nos divertir. Vou ficar em casa e não me divertir. Vou ficar bêbado, mas vou ler um livro e dormir às 23h58. Isso vai dar a eles uma lição, convenço a mim mesmo, sem realmente saber quem são eles.
Mas, assim que chego à república, percebo que cometi um erro terrível. Ao abrir a porta da frente, sou atingido por um bafo quente de levedura, da cerveja caseira de Yorkshire de Marcus e Joshua, e é como se a casa inteira tivesse arrotado na minha cara. Entro no quarto de Joshua e encontro um barril de plástico borbulhando e chiando perto de um aquecedor ligado no máximo. Abro a janela para ventilar um pouco aquele gás intestinal.
Claro que ninguém voltou ainda, como eu imaginava, mas acho que não estava preparado para ver a casa tão vazia assim. Então, decido ir ao mercadinho da esquina. São 17h45, a hora perfeita para se comprar comida com desconto.
Comprar comida com desconto não é algo que se deve fazer de maneira descuidada. Os enlatados amassados costumam ser seguros, mas os produtos frescos são um campo minado. Como regra geral, a redução do preço é proporcional ao perigo envolvido em ingerir o alimento; então, o truque é fazer uma compra vantajosa sem que isso provoque uma dor de barriga. Um mero desconto de 10 pence em meio quilo de rosbife cinza-azulado quase vale o risco, mas um frango inteiro por 25 pence é sinal de encrenca. Rosbife e frango também são, normalmente, mais seguros do que carne de porco ou peixe. Carne de porco passada não é bom para ninguém, mas com um rosbife velho a gente, ao menos, pode se enganar dizendo que não está estragado, mas, sim, bem-passado. O mesmo se aplica a comidas muito temperadas, que não estão estragadas, só muito picantes. Por essa razão que o curry é um caso clássico item com desconto no preço.
No mercadinho, eu e uma velhinha com um bigode de Emiliano Zapata nos olhamos cautelosamente por cima do freezer. Como se passaram poucos dias desde o Natal, há vários perus letais ali, assim como uma perna de cordeiro que parece prestes a pular e andar de volta para a fazenda sozinha. Não é uma boa perspectiva; por isso, decido partir para um prato de filé desidratado com curry com 75 pence de desconto e um pequeno agrado, um pote de Nesquik sabor banana e meio litro de leite.
Mas a alegria dura pouco. Quando volto, tomo o Nesquik, ponho a chaleira para ferver, dissolvo o pó de curry amarelo-berrante numa caçarola, janto e começo a me sentir como Robinson Crusoé. A casa está vazia, chove lá fora, a televisão portátil de Josh está trancada no guarda-roupa dele e começa a ficar bem claro que os tais melhores anos da minha vida nunca vão acontecer.
Sai dessa! Faça alguma coisa!
Roubo uns trocados da jarra de cobre no quarto de Josh e empilho as moedas perto do telefone público no corredor.
Mas ligar para quem? Penso em ligar para um cara chamado Vince que conheci numa festa, mas não quero ir a um pub só com mais um sujeito, e também não tenho o número dele e não consigo me lembrar do sobrenome ou de onde ele mora ou qualquer coisa a respeito. Lucy Chang está em Minneapolis, e acha que sou racista. Colin Pagett ainda está com hepatite. Quase ligo para Patrick, antes de me lembrar de que não gosto dele. Por fim, resolvo ligar para Rebecca Epstein, pois ela é aluna de direito, e direito é um curso mais puxado e existe uma boa chance de ela estar fazendo algum trabalho.
Ela mora na Kenwood Manor, na mesma ala que Alice. Por isso, sei o número. Depois de uns 20 toques, uma voz com sotaque de Glasgow atende.
— Alô, é a Rebecca — Pausa. — Alôôôô?
— Aqui é o Brian.
Pausa.
— Brian Jackson — explico.
— Eu sei qual Brian. O que está fazendo aqui?
— Fiquei entediado, só isso.
— Meu Deus! Eu também! — Outra pausa. — Então...?
— Estava pensando no que você vai fazer hoje à noite.
— Esperar você ligar, claro. Isso é um convite? — indaga, como se estivesse perguntando isso é um cocô?
— Não. Só pensei se você não gostaria de ir ao cinema ou coisa assim. Está passando O Evangelho segundo São Mateus, do Pasolini, no Arts...
— Será que não poderíamos assistir a alguma coisa mais divertida...?
— O primeiro ano do resto de nossas vidas, no ABC?
— Pelo menos, não é um filme do Pasolini.
— De volta para o futuro, no Odeon...
— Quantos anos você tem, mesmo...?
— Cocoon, no ABC...
— Deus me livre...
— Você é meio exigente, não?
— Eu sei. Dá medo, não é? Tem certeza de que está a fim de encarar, Brian?
— Acho que sim. Então, o que você quer fazer?
— Você tem bebida?
— Doze galões. Só que tudo de cerveja caseira.