— Eca! Mas eu não sou perfeccionista... Você mora na Richmond House?
— Isso.
— Tudo bem. Chego em meia hora.
Ela desliga e, de repente, fico com medo.
Quarenta minutos depois, ela está sentada na minha cama bebendo cerveja caseira e rindo de mim. Como de costume, está com o seu uniforme, ou o que mais parece um uniforme. Coturnos pretos, meias-calças pretas embaixo de uma minissaia jeans azul-escura, um suéter preto de gola em V e o sobretudo militar preto que eu ainda não a vi tirar. O cabelo curto está lustroso de gel Black and White, erguido num pequeno topete oleoso na frente do quepe de operário preto e pontudo. Na verdade, tudo o que ela usa parece sugerir intencionalmente uma vida de trabalho árduo, o que, de fato, é estranho, pois me lembro de que a mãe dela é ceramista e o pai é pediatra. A única concessão de Rebecca às noções convencionais de feminilidade é uma grossa camada de batom brilhante vermelho-rubi e uma grande quantidade de rímel que a faz parecer, ao mesmo tempo, intimidadora e glamorosa, como uma representante hollywoodiana do grupo Baader-Meinhof. Ela até fuma como uma estrela de cinema, Bette Davis ou alguém assim, mas uma estrela que enrola os próprios cigarros. Aliás, hoje ela parece um pouco mais atraente que de costume, e me sinto um pouco preocupado por ela ter se esforçado para isso.
Quando ela, enfim, para de rir, eu digo:
— Bem, fico contente de você achar a minha vida sexual engraçada, Rebecca.
— Mas só é vida sexual se tiver sexo, não é?
— Talvez ela estivesse dizendo a verdade...
— Sim, Brian, claro que estava dizendo a verdade. Falei que ela era uma vaca, não falei? E não adianta ficar com essa cara de bunda. Você sabe que é engraçado. Senão, não teria me contado. — Dá uma tragada no cigarro e deixa a cinza cair no chão ao lado do futon. — De qualquer modo, foi bem-feito para você.
— Por quê?
— Você sabe por quê. A grande sedução da burguesia. Pode se chamar de socialista, mas, no fim de tudo, você é igual aos outros alpinistas sociais dessa universidade. Todos prontos para ficar de barriga para cima e serem afagados pelas ditas classes superiores...
— Isso não é verdade!
— É, sim... Conservador no armário!
— Stalinista...!
— Traidor da classe!
— Esnobe!
— Esnobe invertido!
— Proto-yuppie! Dá pra tirar suas botas Doctor Martens de cima do meu edredom?
— Com medo que eu estrague o primoroso tecido?
Mas ela tira os pés, vem sentar ao meu lado e toca o copo de cerveja quente no meu, como forma de reconciliação.
— Por que o estrado da sua cama está atrás do guarda-roupa? — pergunta.
— Quis transformar minha cama num futon.
— Um futon, é? Bem, Brian, devo dizer que um colchão no chão não faz um futon.
— Isso é quase um haicai — comento.
— Quantas sílabas tem um haicai?
Essa eu sei.
— Dezessete, arranjadas em 5-7-5.
Ela pensa, por talvez um segundo, e diz:
Fedor certamente
Segue um colchão no chão.
Que não faz um bom futon.
Faz menção de tomar um gole, mas interrompe o gesto para tirar um fiapo de tabaco grudado no batom, um gesto tão extravagante, lânguido e relaxado que me noto de soslaio olhando seus lábios para o caso de ela fazer aquilo de novo. Quando ela percebe, balbucio:
— Então, como foi o seu Natal?
— Nós não comemoramos o Natal. Somos judeus. Nós matamos Cristo, lembra?
— Mas e a... como chama... Páscoa Judaica?
— Hanukah. Também não comemoramos. Brian Jackson, para alguém que está representando nosso glorioso estabelecimento no Desafio Universitário, você é muito ignorante. Quantas vezes vou ter de explicar que somos judeus socialistas, não ortodoxos e antissionistas de Glasgow?
— Não parece muito divertido...
— É! Não é mesmo! Por que acha que estou aqui com você?
Acho que vou tentar a sorte com um pouco de humor judaico.
— Como é que os judeus se presenteiam sem Natal
— O quê?
— Nada...
Ela me examina por um momento e abre um meio sorriso...
— Antissemita...
Retorno o sorriso. De repente, sinto um incrível afeto por Rebecca Epstein e quero fazer um gesto de amizade. Tenho uma ideia.
— Isso me lembra que comprei isso para você! Feliz Hanukah!
É o álbum da Joni Mitchell que Alice não quis. Eu perdi a nota fiscal. Rebecca olha para mim, questionando:
— Para mim?
— Uh-hum.
— Tem certeza? — Ela faz a pergunta como um guarda da fronteira da Europa Oriental, desconfiando de que o meu passaporte é falso.
— Absoluta!
Ela segura o disco entre o indicador e o polegar e examina o verso da embalagem.
— Joni Mitchell...
— Uh-hum. Você conhece?
— Conheço o trabalho dela.
— E já tem esse disco?
— Não. Não, não tenho.
— Bem, deixe eu pôr para tocar...
Pego o disco da mão dela, vou até o aparelho, retiro Tears For Fears e ponho Blue, lado 2 faixa 4, A Case Of You, sem dúvida uma das mais belas canções de amor já gravadas em vinil. Depois de ouvirmos a introdução e o primeiro verso em silêncio, pergunto:
— Então? O que você acha?
— Acho que fiquei menstruada.
— Você não gostou?
— Bem, para ser bem honesta, não é a minha, Brian.
— Você vai acabar gostando...
— Hummm — murmura ela, duvidosa. — Então, grande fã da Joni, é?
— Mais ou menos. Para ser honesto, sou mais a Kate Bush.
— Hum, imaginei...
— Por quê?
— Porque você é The Man With The Child In His Eyes, Brian— Rebecca fala e tenta esconder o riso na cerveja.
— O que você anda ouvindo no momento?
— Muitas coisas. Durutti Column, Marvin Gaye, The Cocteau Twins, um pouco de blues de raiz, Muddy Waters, The Cramps, Bessie Smith, Joy Division, The New York Dolls, Sly and the Family Stone, algumas regravações. Vou fazer uma compilação, ver se consigo desmamar você dessa música melosa. É preciso tomar cuidado com essas cantoras-compositoras, Brian. Elas são boas com moderação, mas, se ficar ouvindo só essas coisas, você pode começar a desenvolver seios.
— Se você não quer o presente, é só falar... — e levanto para mudar o disco.
— Não! Não, eu fico com ele. Posso acabar gostando. Muito obrigada, Brian. Muito cristão de sua parte.
Volto a me sentar ao seu lado e ficamos em silêncio por um momento. Então, ela pega a minha mão, aperta bem forte e diz:
— Sério, obrigada.
Dez minutos depois, estamos na cama e, de algum modo, minha mão entrou no sutiã dela.
Dizem que o lado pessoal se manifesta na política, e é justo dizer que o beijo de Rebecca Epstein é como a sua política — radical, direto e inflexível. Deito de costas e ela pressiona minha cabeça no travesseiro e seus dentes trincam os meus, mas quero dar o melhor de mim e trinco de volta. Então, é só uma questão de tempo até nossos dentes perderem o esmalte. A combinação da bebida com o aquecedor a gás me deixou embriagado, até um pouco assustado, mas é divertido, como estar aprontando alguma na escola. A camada grossa de batom cria uma câmara de ar comprimido na junção de nossas bocas, e, quando ela afinal se afasta, quase ouço um pop como nos desenhos animados, quando um desentupidor de pia é puxado da cara de alguém.