— Com certeza, é um privilégio, e eles sabem disso, pagam uma porrada de impostos e fazem o que podem pra retribuir alguma coisa. Mas, se você quer saber, o pior esnobe é o esnobe invertido. E sinto muito se isso não está de acordo com algum sistema de pensamento socialista aprovado pelos estudantes, mas é o que eu acho. Estou cansada de gente que tenta disfarçar a inveja como uma espécie de virtude! — Interrompe o discurso com um estremecer, o rosto vermelho, e pega a caneca de café. — Eu não estou falando necessariamente de você, claro.
— Claro que não — e tomo um gole de café, que tem um gosto amargo de pasta de dente, e faz-se uma pausa enquanto ouvimos o Concerto de Brandenburgo.
— Esse não é o tema da série Antiques roadshow?
— É... Mas eles não dizem na capa do LP.
Ela sorri, cai de volta no futon.
— Desculpe... Foi só um desabafo.
— Não, tudo bem. Até concordo com você. Em algumas partes. — Mas não consigo deixar de pensar em Mingus e Coltrane comendo tigelas de macarrão.
— Quer dizer, somos amigos, não somos? Brian... Olhe para mim. Somos amigos, não somos?
— Sim, é claro que somos amigos...
— Mesmo eu sendo a Rainha de Sabá e você o moleque que limpa chaminés?
— Claro!
— Então, vamos esquecer isso tudo? Esquecer e seguir em frente?
— Esquecer o quê?
— Tudo isso que a gente estava... Ah, entendi. Já está esquecido?
— Está esquecido.
— Que bom! — ela fala. — Que bom!
— Então, quer ir ao cinema hoje à tarde?
— Não posso. Tenho uma audição mais tarde...
— Entendi... Para quê?
— Hedda Gabler, de Ibsen.
— Em que papel?
— A epônima Hedda.
— Você seria uma ótima Hedda.
— Obrigada. Espero que sim. Mas duvido de que vá conseguir. O terceiro ano está com tudo arranjado. Se tiver sorte, posso ser escalada para — ela faz um sotaque cockney — Berte, a empregada...
— Mas você vai à reunião hoje à noite?
— Vai ser hoje à noite?
— A primeira do semestre!
— Ah, meu Deus! E eu preciso ir?
— Patrick está sendo bem rígido. Pediu que você fosse essa noite, ou está fora do time, foi o que ele disse. — Claro que ele não disse nada disso. Mas mesmo assim...
— OK, a gente se vê lá e depois tomamos alguma bebida. — Ela atravessa o quarto, enlaça os braços em mim, sinto o perfume no seu pescoço e ela sussurra no meu ouvido:
— Amigos de novo, certo?
— Claro. Amigos de novo.
Ainda estou pensando na conversa com Alice, quando o professor Morrison começa a falar:
— Diga-me uma coisa, Brian, por que exatamente você está aqui?
A pergunta me pega de surpresa. Afasto o olhar da janela e me viro para o professor Morrison, que está recostado na cadeira com os dedos entrelaçados em cima da barriguinha.
— Hã... uma aula particular? Às 14h?
— Não, quero dizer aqui na universidade, cursando letras? Por que você está aqui?
— Para... aprender?
— Para quê?
— Porque vale a pena?
— Financeiramente?
— Não, você sabe...
— Para se aperfeiçoar?
— Sim, suponho que sim. Para me aperfeiçoar. E eu gosto de tudo isso, de aprender, de conhecimento...
— Gosta?
— Adoro. Adoro livros.
— O conteúdo dos livros ou só ter um monte de livros?
— O conteúdo, claro...
— Então, você está levando seus estudos a sério?
— Quero crer que sim.
Ele não diz nada. Só volta a se recostar na cadeira, estica os braços para trás com os dedos entrelaçados e boceja.
— O senhor não acha que estou levando os estudos a sério?
— Não tenho certeza, Bri. Espero que sim. Mas a razão da minha pergunta foi sua última redação, Noções de ‗orgulho‘ e ‗preconceito‘ em Otelo. Brian, é simplesmente horrível. Tudo, a começar pelo título, é horrível, horrível, horrível...
— Bom, na verdade escrevi meio depressa...
— Eu sei disso. É visível. Mas é uma coisa tão horrível, insossa e fátua que me perguntei se você era mesmo o autor.
— Certo. E do que o senhor não gostou?
Ele suspira e se inclina para a frente, passando os dedos nos cabelos, como se estivesse prestes a dizer que quer o divórcio.
— Bem, para começar, você fala como se Otelo fosse um conhecido seu e com quem se preocupa.
— Mas isso é bom, não é? Tratar o personagem como um indivíduo real. Não é um testemunho da imaginação vívida de Shakespeare?
— Ou da sua falta de entendimento? Otelo é um personagem fictício, Brian, é uma construção, uma criação. É uma criação complexa e especialmente rica de uma extraordinária obra de arte, mas você só conseguiu dizer que é uma pena ele ter sofrido tanto por ser negro. Essa redação só me disse que você acha que intolerância é uma coisa ruim. Mas por que me dizer isso? Achou que eu poderia considerar a intolerância uma coisa boa? Qual será sua próxima redação, Brian? Hamlet, por que essa carinha triste?, ou talvez Por que os Montéquio e os Capuleto não fazem as pazes?
— É que o racismo é uma coisa que me desperta emoções fortes.
— Tudo bem, mas o que eu posso fazer em relação a isso? Ligar para a mãe do Iago e recomendar que ele se comporte melhor? Ironicamente, como discussão racial, o seu retrato de Otelo como o Nobre Selvagem irrepreensível e impecável pode até ser visto como racismo...
— Você acha que minha redação é racista?
— Não. Acho que é ignorante, e as duas coisas estão relacionadas.
Começo a dizer alguma coisa, porém não consigo formular. Sinto-me quente, corado e envergonhado, como se tivesse 6 anos de idade e tivesse feito xixi nas calças. Quero que isso termine o mais rápido possível. Então, levanto-me um pouco, estendo a mão para pegar a redação.
— OK. Talvez eu deva tentar outra coisa... — mas ele ainda não terminou e puxa as páginas de volta.
— Para mim, isso não é um trabalho de alguém que adora conhecimento. É trabalho de alguém que gosta muito de parecer adorar conhecimento. Não existe nada de original na abordagem ou no pensamento, nenhum esforço mental, é superficial, moralizador, mal-informado, intelectualmente imaturo, recheado de ideias preconcebidas, de besteiras e clichês. — ele afasta-se da cadeira e pega minha redação com a ponta dos dedos, como se fosse uma gaivota morta. — E, o pior de tudo, é decepcionante. Estou decepcionado que você tenha escrito isso, e ainda mais decepcionado por ter achado que isso merecia o meu tempo e energia para ler.
Faz uma pausa, no entanto não consigo pensar em nada para dizer. Então, fico olhando pela janela esperando aquilo acabar. Mas o silêncio é desconfortável, e, quando, afinal, volto à cena, ele está me dando um olhar que imagino poder ser interpretado como paterno.
— Brian, hoje de manhã, dei uma aula particular sobre W. B. Yeats para uma aluna, uma garota simpática, que deve se sair bem, que estudou numa das melhores escolas particulares para meninas, e, a certa altura, precisei ir até o carro pegar o meu Atlas para explicar onde fica a Irlanda do Norte. — Eu tento falar, mas ele levanta a mão. — Brian. Um ano atrás, quando o entrevistei neste escritório, você me pareceu um jovem entusiasmado, apaixonado. Um pouco sem foco talvez, um pouco gauche... Posso usar esse termo? É uma definição justa? Mas você estava dando o devido valor à sua educação. Muitos alunos, principalmente numa universidade como esta, tendem a ver seus estudos como uma espécie de subsídio do governo para uma festa de três anos de queijos e vinhos que termina com um apartamento, um carro e um bom emprego, mas achei que você não fosse assim...