— É o visual prisioneiro foragido. Não gostou? — pergunta. E percebo a entonação grave e arrastada da voz, indicando que deve ter se embriagado no trem.
— Sim! Sim, é bem... ousado. Quem cortou?
— Eu mesmo.
— Por causa de uma aposta ou...?
— Vai se danar. Então, posso entrar ou não?
— Claro...
Eu destranco a porta, acendo a luz da entrada e nos esprememos pelas bicicletas no corredor. Spencer parece diferente de outras formas também, os olhos caídos e cansados, com manchas roxas embaixo, como hematomas. Apesar do frio cortante, veste apenas um casaco velho e amassado que me lembro de que ele usava na escola. Como bagagem, leva uma fina sacola plástica, a qual, até onde posso ver, só contém duas latas de cerveja.
— Liguei hoje de manhã. Falei com um garoto chique — comenta, enquanto subimos as escadas.
— É o cara que divide a casa comigo, Josh. Tem o Josh e o Marcus.
— Como eles são?
— Ah, são legais. Mas não fazem seu tipo.
— E fazem o seu?
— Acho que não fazem o tipo de ninguém, pra ser honesto. — Estamos do lado de fora do meu quarto. Abro a porta.
— Então, é aqui que tudo acontece? Legal...
Tiro o casaco e jogo de qualquer jeito em cima dos halteres, antes que Spencer os veja.
— Fique à vontade. Quer uma xícara de chá, café ou algo do tipo?
— Tem alguma birita?
— Acho que tem um pouco de cerveja caseira.
— Cerveja caseira?
— É do Marcus e do Josh, na verdade.
— Tem gosto de quê?
— Tem um pouco de gosto de mijo.
— Mas tem álcool?
— Tem.
— Então, manda!
Um pouco relutante, deixo Spencer sozinho no meu quarto e me apresso até a cozinha para pegar as bebidas. Também estou precisando de uma. A visita inesperada me deixou desconcertado, porque ele está sendo um pouco esquisito e malvado e também porque nunca imaginei que algum dia não ficaria feliz em vê-lo. Além disso, estou um pouco angustiado, pensando se deixei meu caderno de poesia aberto na mesa, numa tentativa de um novo soneto erótico em que estou trabalhando. A primeira linha contém as palavras seios de alabastro e, se Spencer ler isso, nunca mais vai me deixar em paz.
De repente, ouço a abertura do Concerto de Brandenburgo tocando superalto no meu quarto. Então, pego as canecas de cerveja e corro de volta para encontrá-lo sentado na minha mesa com um cigarro na boca, o álbum de Bach numa das mãos e o Manifesto Comunista na outra.
— O que você tem sido ultimamente: comunista ou socialista?
— Socialista, acho — respondo, diminuindo o volume.
— Certo... Qual é a diferença?
Eu sei que ele sabe a diferença, que estou sendo provocado, mas respondo mesmo assim.
— Um comunista se opõe à noção de propriedade privada e posse dos meios de produção, ao passo que socialismo consiste em trabalhar em prol...
— Por que seu colchão está no chão?
— É um futon.
— Certo. Um futon. Foi a gatinha asiática que te ensinou isso, é?
— Gatinha asiática, racismo e sexismo na mesma frase! — comento, deslizando o poema dos seios de alabastro para dentro da gaveta. — Na verdade, Lucy nasceu em Minneapolis. Só porque ela é de origem chinesa, não quer dizer que seja chinesa.
— Cara, você tem razão! Essa cerveja é mijo puro! Não dá pra irmos até o pub ou coisa assim?
— Não está meio tarde?
— Ainda temos meia hora.
— Tenho coisas para ler até amanhã de manhã.
— O que você tem de ler?
— O rapto da Madeixa, de Pope.
— Parece picante... Mas deixa pra amanhã de manhã, ok?
— Bem...
— Vamos lá... Só uma cervejinha...
Sei que não deveria ir, claro. Mas, de repente, o quarto parece muito pequeno e claro, e ficar bêbado começou a se tornar uma necessidade. Por isso, acabo concordando e vamos ao pub.
O Flying Dutchman ainda está cheio quando chegamos. Enquanto espero no balcão, fico observando Spencer, virando a cabeça para os lados com os olhos vermelhos e apertados, tragando o cigarro com amargura. Pego duas canecas de cerveja e uma vodca para ele.
— Então, esse é um pub de estudantes? — pergunta.
— Não sei. Suponho que seja. Vamos ver se conseguimos achar um lugar?
Andamos espremidos pelas mesas até o fundo, segurando as canecas acima da cabeça, até acharmos uma mesa vazia e nos acomodarmos. Há um momento de silêncio e, então, pergunto:
— E aí, como vão as coisas em casa?
— Ah, maravilhosas... Realmente fantásticas...
— E o que fez você vir até aqui?
— Você me convidou. Venha me visitar... Lembra?
— É claro...
Spencer fica em silêncio por um momento, parece tomar uma decisão e diz, um tanto casual demais:
— E, como disse, sou um prisioneiro foragido.
— Como assim?
— Bem, basta dizer que estou numa situação ruim. Com o sistema legal, quero dizer.
Começo a rir, mas logo paro.
— Por quê? Não é outra briga...
— Não. Me pegaram burlando o seguro-desemprego.
— Tá brincando...
— Não, Bri, não estou — diz, cansado.
— Como?
— Não sei... Alguém deve ter me delatado. Ei, não foi você, foi?
— Claro, Spencer, fui eu... Então, o que vai acontecer?
— Não dá para saber, né? Imagino que vai depender do juiz.
— Você vai ter de ir ao tribunal?
— Ah, sim. Eles andam tomando medidas enérgicas, pelo visto. Por isso, vou ter que ir ao tribunal no mês que vem. Boas notícias, não?
— O que você vai dizer?
— No tribunal? Ainda não sei. Pensei em dizer que Deus me mandou fazer isso.
— E você continua trabalhando no posto de gasolina?
— Bem... Não exatamente.
— Por que não?
— Porque me pegaram?
— Pegaram você?
Toma um generoso gole da vodca.
— Com a mão no caixa.
— Tá brincando!
— Brian, por que você fica perguntando se eu tô brincando? Acha que eu faria piada com esse tipo de coisa?
— Não... Só quis dizer...
— Tinha uma câmera escondida em cima do caixa, e eu fui pego tirando dinheiro no fim da noite.
— Quanto?
— Não sei... Uma nota de 5 libras, algumas de 10, um pouquinho aqui e ali por não registrar a venda de doces e batatinhas e coisas do tipo.
— E vão processar você?
— Não, não podem, porque não fui registrado. Mas dá pra dizer que o gerente não ficou muito feliz. Tomou um bocado do meu salário e disse que, se me visse de novo, quebraria as minhas pernas...
— Quanto ele acha que você pegou?
— Umas 200 libras?
— E quanto você pegou?
Spencer solta a fumaça.
— Duzentas libras, mais ou menos.
— Puta merda, Spencer...
— Estavam me pagando 1,80 libras a hora, Brian. Que merda eles podiam esperar?
— Eu sei, eu sei!
— De qualquer modo, você é um comunista. Pensei que não concordasse com a propriedade privada.
— Não concordo, mas Marx está falando dos meios de produção, não do conteúdo do caixa do posto de gasolina. E, além do mais, não é que eu desaprove, e, aliás, eu sou socialista. Só acho que, bem, é uma pena, só isso. O que seu pai e sua mãe disseram?
— Ah, eles estão muito orgulhosos de mim! — ele bebe, mais ou menos, meia caneca num gole só. — Mas a questão é que eu estou completamente fodido.