— …Vamos esquecer isso, OK?
— Não... Ainda assim...
— Tudo bem, Bri, se é pra deixar você feliz... Sim, você foi um babaca total. Agora, podemos deixar isso de lado?
— Mas como você está se sentindo?
— Em relação a quê?
— …Em relação... a isso tudo?
— No geral, você quer dizer? Não sei. Para ser sincero, estou muito cansado. Cansado, e um pouco assustado, Bri — ele fala bem baixo, preciso me inclinar na cadeira para escutar, e percebo que seus olhos estão vermelhos e úmidos.
Spencer percebe meu olhar e cobre o rosto com as mãos, pressionando os olhos com as pontas dos dedos, solta o ar devagar, e me sinto um garotinho de 12 anos de novo, triste, envergonhado, sem saber o que fazer... Algum ato de bondade, imagino, mas o quê? Talvez dar um abraço nele? Mas não consigo me levantar da cadeira, preocupado com que outras pessoas no hospital vejam a cena. Por isso, continuo parado.
— Mas é normal se sentir assustado, não é? — pergunto. — Com a vida, com essa parte da vida. É o que as pessoas dizem...
— É. Acho que sim...
— Depois melhora...
— Melhora? — quer saber Spencer, os olhos ainda cobertos. — Porque minha impressão é de que estou totalmente fodido, Bri...
— Besteira! Está tudo bem, cara, vai dar tudo certo.
— Estico o braço, ponho a mão no seu ombro e dou um pequeno apertão. O gesto me parece desajeitado e constrangedor, deixando-me inclinado na cadeira com o braço estendido, mas fico assim até o ombro dele parar de tremer. Spencer tira as mãos de cima dos olhos.
— Desculpe... São esses analgésicos — ele se justifica, limpando os olhos com as mangas da camisa.
Pouco tempo depois, o assunto acaba, e, mesmo tendo ainda bastante tempo, eu me levanto e pego o casaco.
— Olha, é melhor eu correr, senão vou perder o último trem.
— Obrigado pela visita, amigo...
— Foi um prazer...
— Bom, não exatamente um prazer...
— É, não, mas você entende...
— Ei, não vai assinar o meu gesso?
— Sim, claro. — Vou até o fim da cama, pego uma caneta de uma das pranchetas e localizo um espaço em branco para escrever. Há muitos melhoras, nomes que não reconheço, um bem-feito, seu idiota e um Zep é o máximo! de Tone. Penso por um instante e escrevo: Querido Spencer, desculpe-me e obrigado. Quebre a perna! Ha-ha-ha! Do seu amigo Bri.
— O que você escreveu?
— Ah... Quebre a perna...
— Quebre a perna...!
— Quer dizer boa sorte. É uma expressão usada no teatro...
Spencer olha para o teto, dá um sorriso apertado e diz, devagar:
— Brian, às vezes você consegue ser inacreditavelmente babaca e idiota.
— É, Spence, eu sei, cara. Eu sei...
37
PERGUNTA: Que mártir do século III, também identificado como médico e padre romano, morto durante a perseguição aos cristãos pelo Imperador Claudius II Gothicus, ou como Bispo de Terni, também martirizado em Roma, é homenageado desde o século XIV com uma festividade celebrando os apaixonados?
RESPOSTA: São Valentim.
Sempre que escuto Edith Piaf cantando Non, je ne regrette rien — o que acontece mais do que eu gostaria, agora que estou na faculdade — , não consigo deixar de pensar que diabo ela está falando? Eu me arrependo de quase tudo. Estou ciente de que a transição para a vida adulta é difícil, às vezes dolorosa. Conheço as convenções dos ritos de passagem, sei o que significa o termo literário bildungsroman, sei que é inevitável olhar para as coisas que aconteceram na minha infância com um sorriso torto e experiente. Mas será que há razão para eu me sentir envergonhado e constrangido por coisas que aconteceram 30 segundos atrás? Será que existe uma razão para a vida ser esse panorama contínuo de amizades arruinadas, oportunidades perdidas, conversas tolas, dias desperdiçados, comentários idiotas e impensados e piadas sem graça que ficam jogadas no chão à minha frente, contorcendo-se como peixes moribundos?
Bem, não mais. Decido dar um basta. No trem, voltando para casa e pensando na última rodada de cagadas inacreditáveis, resolvo que vou mudar minha vida. De maneira geral, costumo decidir mudar minha vida numa média de, talvez, 30 ou 40 vezes por semana, em geral às 2h da madrugada, bêbado, ou cedo na manhã seguinte, de ressaca, mas, dessa vez, vai acontecer mesmo. Vou começar a viver bem a vida de agora em diante. Já ficou claro que ser Descolado e distante não está funcionando, e é provável que nunca vá funcionar. Por isso, vou me dedicar a uma vida baseada nos princípios centrais de Sabedoria, Bondade e Coragem.
Quando o trem para na estação, começo minha vida mais sábia, bondosa e corajosa. Encontro uma cabine telefônica na plataforma, confiro para ver se tenho uma moeda e disco um número. Des atende. Agora é oficial, não é mais segredo. Então, imagino que não há razão para ele não atender ao telefone.
— Alô?
— Oi! Des, aqui é o Brian! — cumprimento, todo animado, e percebo que, inconscientemente, eu o chamei de Des, não de tio Des, sem muita certeza se isso consiste num sintoma da minha atitude mais madura em relação à vida ou numa reação freudiana ao fato de ele estar transando com a minha mãe.
— Ah! Olá... — responde Des, soando como se tivesse medo de mim, só Deus sabe por que, já que ele pesa muito mais que eu, e, além do mais, eu não poderia bater nele pelo telefone. Há uma pausa, e ele ajusta o fone na orelha. — Desculpe por, bem, pelo episódio dessa manhã. Nós íamos contar a você sobre sua mãe e eu...
— Des, está tudo bem... Mesmo... — asseguro, observando meu reflexo no vidro da cabine telefônica e sorrindo como um palhaço de circo. — Minha mãe está aí? — pergunto. O que é meio bobo, já que é a casa dela.
— Claro! Vou passar para ela. — Ouço um farfalhar, ele coloca a mão sobre o fone e murmura algo; depois, minha mãe atende.
— Alô? — diz com cautela, o fone meio longe da boca.
— Oi, mãe.
— Oi, Brian. Você chegou bem? — pergunta, articulando demais as palavras, o que significa que está embriagada.
— Cheguei — respondo, e faz-se um silêncio que me dá vontade de desligar. Mas, então, me lembro do meu novo lema, Sabedoria, Bondade e Coragem, engulo em seco e começo a falar.
— Olha, oi, eu só queria dizer... — o que eu quero dizer...? — Só queria dizer que pensei a respeito e estou muito, muito feliz por você e o Des, e acho que tudo bem vocês se casarem, sério, acho mesmo. Na verdade, acho que é uma grande ideia. Ele é um cara muito legal e desculpe se... Bem, foi um choque... Só isso...
— Oh, Brian...
— E também não tem problema alugar os quartos. Eu vou até aí no feriado da Páscoa e tiro as minhas coisas. Daí, fica tudo para vocês. Como você disse, no fim das contas, é só um monte de aeromodelos. Então, o que estou dizendo é... o que eu quero dizer é que acho que é uma coisa boa. Estou... feliz por você estar feliz. — Não há resposta do outro lado da linha, só o som da minha mãe respirando, mudando o fone de uma mão para a outra. — Contanto que você não espere que eu o chame de pai... — brinco, do jeito mais leve que consigo.
— É claro que não, Brian... — ela estava prestes a dizer algo, mas muda de ideia.
— Bom, é só isso. Você ainda vem amanhã?
— Claro que vou, eu não perderia por nada no mundo.