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Assim, a vida é uma grande cadeia, cuja natureza pode ser depreendida a partir do simples confronto com um de seus elos. Como todas as artes, a Ciência da Dedução e da Análise só pode ser adquirida mediante um longo e paciente aprendizado, mas a vida não é longa o bastante para permitir que um mortal atinja o mais alto grau de perfeição nessa área. Antes de voltar-se para esses aspectos morais e mentais da questão, que são os que apresentam as maiores dificuldades, o pesquisador deve começar pelo domínio dos problemas mais elementares. Ao conhecer um homem, que ele aprenda a deduzir, só por olhá-lo, qual sua história, seu ofício ou profissão. Por mais infantil que esse exercício possa parecer, desenvolve as faculdades de observação e ensina para onde se deve olhar e com que intenção. As unhas de um indivíduo, as mangas de seu casaco, seus sapatos, os joelhos de suas calças, os calos do indicador e do polegar, sua expressão, os punhos de sua camisa, todos esses detalhes revelam a profissão de um homem. E quase inconcebível que tudo isso reunido deixe de esclarecer um observador competente”.

- Quanto disparate! - desabafei, jogando a revista sobre a mesa. - Nunca li tanta bobagem na vida.

- O que é? - perguntou Sherlock Holmes.

- É este artigo - disse, apontando-o com a colher para o ovo, enquanto me preparava para iniciar o desjejum. - Você já o leu, está assinalado a lápis. Não nego que foi escrito com inteligência, mas é irritante. Sem dúvida, é teoria de desocupado, alguém que desenvolve todos esses pequenos paradoxos a portas fechadas em seu gabinete. Não é nada prático. Gostaria de vê-lo sacolejando num vagão de terceira classe do trem subterrâneo para perguntar-lhe quais as profissões de seus companheiros de viagem. Apostaria mil por um contra ele.

- Perderia seu dinheiro - observou Holmes calmamente. - Quanto ao artigo, eu o escrevi.

- Você?

- Sim. Tenho tendência a observar e a deduzir. As teorias que expus aí, e que lhe parecem tão fantasiosas, são extremamente práticas, tanto que dependo delas para comer e beber.

- E como? - perguntei sem querer.

- Bem, trabalho por conta própria. Imagino que seja o único no mundo com meu ofício. Sou um detetive-consultor, se entende o que quero dizer. Aqui, em Londres, há muitos detetives particulares e a serviço do governo. Quando eles têm dificuldades, procuram por mim e tento colocá-los na pista certa. Apresentam-me todos os indícios e, graças a meus conhecimentos da história do crime, geralmente consigo encaminhá-los corretamente. Existe uma grande similaridade entre os delitos, de tal modo que, se você tem os detalhes de mil casos na cabeça, dificilmente deixará de resolver o milésimo primeiro. Lestrade é um detetive completo.

No entanto, há pouco tempo, atrapalhou-se com um caso de falsificação e veio me procurar.

- E aquelas outras pessoas?

- A maioria foi enviada por agências particulares de investigação. Têm algum problema e vêm em busca de esclarecimento. Escuto suas histórias; ouvem os comentários e eu embolso meu dinheiro.

- Você está querendo dizer - falei - que, sem sair de seu quarto, deslinda o mistério que outros não conseguem esclarecer, mesmo com conhecimento dos detalhes?

- Exato. Tenho uma certa intuição sobre esse tipo de coisa. Às vezes, surge um caso um pouco mais complexo. Então, tenho que andar por aí e ver as coisas com meus próprios olhos. Você sabe que tenho conhecimento especializado para aplicar à solução dos problemas, e isso facilita de modo fantástico a situação. As regras de dedução expostas no artigo, e que você considerou desprezíveis, são inestimáveis para meu trabalho prático. Observação é minha segunda natureza. Você ficou surpreso quando lhe disse, à primeira vez em que nos encontramos, que você havia estado no Afeganistão.

- Alguém lhe contou, sem dúvida.

- Nada disso. Eu sabia que você vinha do Afeganistão. Como o hábito é antigo, a seqüência de pensamentos se formou tão rápido em minha mente que cheguei à conclusão sem ter consciência das etapas intermediárias. No entanto elas existiram. A seqüência foi a seguinte: “Aqui temos um cavalheiro com aparência de médico, mas que também parece um militar. Trata-se de um médico do exército, portanto. Veio há pouco dos trópicos, porque seu rosto está bronzeado e esta não é a cor natural de sua pele, uma vez que seus pulsos são claros. Sofreu doenças e privações, seu rosto abatido denuncia isto. Feriram-lhe o braço esquerdo, pois ele o mantém rígido numa postura nada natural.

Em que lugar dos trópicos um médico do exército britânico enfrentaria dificuldades e poderia ter seu braço ferido? No Afeganistão, é claro”. Toda essa corrente de pensamentos não levou um segundo. Aí, comentei que você vinha do Afeganistão e deixei-o espantado.

- Do modo como você explica, tudo parece muito simples - ponderei, sorrindo. - Você me lembra o Dupin{4} , de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que indivíduos como ele pudessem existir fora das páginas dos livros.

Sherlock Holmes ergueu-se e acendeu seu cachimbo.

- Com certeza, pensa estar me fazendo um cumprimento ao me comparar com Dupin - observou. - Bem, em minha opinião, Dupin era um tipo inferior.

Aquele truque de interromper o pensamento de seus amigos com um comentário oportuno, após um quarto de hora de silêncio, é exibicionista e superficial. Tinha um certo gênio analítico, sem dúvida. Mas, de maneira alguma, era o fenômeno que Poe imaginava que fosse.

- Já leu as obras de Gaboriau?{5} - perguntei.

- Lecoq corresponde a sua idéia de detetive?

Sherlock fungou com sarcasmo.

- Lecoq era um pobre estúpido - disse, com irritação. - A única coisa que o recomendava era sua energia. Esse livro me deixou doente. A questão era identificar um prisioneiro desconhecido. Eu o teria feito em vinte e quatro horas. Lecoq levou seis meses ou mais. Esse deveria ser o livro didático dos detetives: para ensinar-lhes o que não deveriam fazer!

Eu estava realmente indignado por ver tratados dessa forríza dois personagens que tanto admirava. Caminhei até a janela e fiquei olhando o movimento da rua.

“Esse sujeito pode ser muito esperto”, pensei, “mas, sem dúvida, é muito arrogante”.

- Hoje em dia, não há mais crimes nem criminosos - disse ele, lamentando-se. - De que adianta cérebro em nossa profissão? Sei que tenho inteligência suficiente para ser um nome famoso. Não há e jamais houve alguém com a profundidade de conhecimentos e o talento natural para a investigação de crimes que tenho. E para quê? Não há crimes para desvendar. No máximo, alguma vilania mal executada e causada por motivos tão transparentes, que até um oficial da Scotland Yard consegue resolver.

A presunção com que falava me aborrecia e resolvi mudar de assunto.

- O que aquele sujeito estará procurando? - perguntei, apontando para um homem forte, vestido com simplicidade, que caminhava devagar, no outro lado da calçada, observando com ansiedade os números das casas. Trazia um grande envelope azul na mão e, sem dúvida, estava encarregado de entregar uma mensagem.

- Está falando daquele ex-sargento da Marinha? - perguntou Holmes.

“Mas que fanfarrão!”, pensei. “Sabe que não posso confirmar uma coisa dessas.”

Mal tinha esse pensamento me ocorrido, quando o homem que observávamos viu o número da nossa casa e, com rapidez, atravessou a rua. Ouvimos uma batida forte, uma voz grave no andar de baixo e, a seguir, passos pesados na escada.

- Para o Dr. Sherlock Holmes - disse, entrando na sala e estendendo a carta a meu amigo.

Ali estava a oportunidade para acabar com tanta presunção. Holmes não previra isto fazendo a observação ao acaso.

- Posso perguntar-lhe, jovem - falei com a maior suavidade possível -, qual a sua profissão?

- Mensageiro, senhor - respondeu com aspereza. - Estou sem uniforme porque foi preciso consertá-lo.