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Sabia que todos o temiam, até o capitão-mor, e que a maioria o odiava. Mas isso era normal, pois era o piloto quem comandava no mar; era ele quem determinava a rota e dirigia o navio, ele quem os trazia de porto em porto.

Qualquer viagem, hoje, era perigosa, porque as poucas cartas de navegação que existiam eram tão vagas que se tornavam praticamente inúteis. E não havia absolutamente nenhum modo de determinar a longitude.

- Descubra como determinar a longitude e você será o homem mais rico do mundo - dissera-lhe seu velho professor, Alban Caradoc. — A rainha, que Deus a abençoe, lhe dará dez mil libras e um ducado pela resposta ao enigma. Os portugueses comedores de bosta lhe darão mais: um galeão de ouro. E os espanhóis sem mãe lhe darão vinte! Se não tem terra à vista, você está sempre perdido, mocinho. - Caradoc fizera uma pausa e meneara lentamente a cabeça, como sempre.

- Você está perdido, mocinho. A menos que...

- A menos que tenha um portulano! - exclamara Blackthorne alegremente, sabendo que aprendera bem a lição. Estava com treze anos naquela altura e já fazia um ano que era aprendiz de Alban Caradoc, piloto e construtor naval, que se transformara no pai que ele perdera, e que nunca lhe batera, mas ensinara, a ele e aos outros rapazes, os segredos da construção naval e da intimidade com o mar.

Um portulano era um livrinho que continha a observação detalhada de um piloto que estivera lá antes. Registrava percursos por bússolas magnéticas entre portos e cabos, promontórios e canais. Assentava a sondagem, profundidades e cor da água, e a natureza do leito do mar. Continha o como-chegamos-lá-e-como-voltamos: o tempo das tempestades e o de ventos propícios; onde querenar o navio e onde abastecer de água; onde havia amigos e onde inimigos; bancos de areia, recifes, marés, céus; numa palavra, todo o necessário para uma viagem segura.

Os ingleses, holandeses e franceses tinham portulanos para suas próprias águas, mas as águas do resto do mundo tinham sido navegadas apenas por capitães de Portugal e Espanha, e esses dois países consideravam todos os portulanos secretos. Portulanos que revelavam os caminhos marítimos do Novo Mundo ou elucidavam os mistérios do estreito de Magalhães e do cabo da Boa Esperança - ambos descobertas portuguesas -, e desse modo os caminhos marítimos para a Ásia, eram guardados como tesouros nacionais pelos portugueses e espanhóis, e procurados com igual ferocidade pelos inimigos holandeses e ingleses.

Mas um portulano era apenas tão bom quanto o piloto que o escrevera, o escriba que o copiara a mão, o raríssimo impressor que o imprimira, ou o acadêmico que o traduzira. Um portulano podia, por isso, conter erros. Até erros intencionais. Um piloto nunca sabia com certeza até que tivesse estado lá pessoalmente.

Pelo menos uma vez.

Ao mar o piloto era o líder, o único guia, o árbitro final do navio e da tripulação. Sozinho, comandava do tombadilho.

Isso é vinho forte, disse Blackthorne a si mesmo. E uma vez provado, era para não ser esquecido nunca, ser procurado sempre, o sempre necessário. É uma das coisas que mantêm a gente viva, enquanto outros morrem.

Levantou-se e satisfez suas necessidades nos embornais. Mais tarde a areia esgotou na ampulheta ao lado da bitácula, ele virou-a o tocou o sino do navio.

- Pode ficar acordado, Hendrik?

- Sim. Sim, acho que sim.

- Mandarei alguém para substituir o vigia do gurupês. Veja que ele fique ao vento e não a sotavento. Isso o manterá atento e desperto. — Por um momento perguntou a si mesmo se não deveria virar o navio contra o vento e seguir para a noite, mas decidiu em contrário, desceu para a gaiúta e abriu a porta do castelo de proa. A cabina se estendia por toda a largura do navio, e tinha beliches e espaços de redes para cento e vinte homens. O calor envolveu-o, ele se sentiu grato por isso e ignorou o mau cheiro sempre presente, vindo dos porões abaixo. Nenhum dos vinte e tantos homens moveu-se do seu beliche.

- Vá para cima, Maetsukker - disse em holandês, a língua franca dos Países Baixos, que ele falava perfeitamente, assim como o português, o espanhol e o latim.

- Estou às portas da morte - disse o homenzinho de feições astutas, encolhendo-se mais fundo no beliche. - Estou doente. Olhe, o escorbuto levou todos os meus dentes. Que Jesus nos ajude, vamos todos morrer! Não fosse por você, estaríamos todos em casa agora, a salvo! Sou um mercador. Não sou um marujo.

Não faço parte da tripulação... Pegue algum outro. Johann está... — Deu um berro quando Blackthorne o arrancou para fora do beliche e o arremessou contra a porta. Sua boca ficou salpicada de sangue e ele, completamente atordoado. Um pontapé brutal no lado fê-lo sair da letargia.

- Ponha a cara lá em cima e fique lá até morrer ou até que desembarquemos.

O homem escancarou a porta com um puxão e fugiu agoniado.

Blackthorne olhou os outros. Sustentaram-lhe o olhar fixamente.

- Como está se sentindo, Johann?

- Razoavelmente, piloto. Talvez eu viva.

Johann Vinck tinha quarenta e três anos, era o chefe de artilharia e imediato do contramestre, o homem mais velho a bordo. Estava sem cabelos e sem dentes, da cor de um carvalho velho o igualmente forte. Seis anos antes navegara com Blackthorne na malfadada busca da passagem nordeste, e cada um conhecia a capacidade do outro.

- Na sua idade a maioria dos homens já morreu, de modo que você está à frente de todos nós. - Blackthorne tinha trinta e seis.

Vinck sorriu melancolicamente.

 - É o conhaque, piloto, isso mais a fornicação e a vida santa que levei.

Ninguém riu. Então alguém apontou para um beliche.

- Piloto, o contramestre morreu.

- Então levem o corpo para cima! Lavem-no e fechem-lhe os olhos! Você, você e você!

Os homens desta vez saíram rapidamente dos beliches e, juntos, meio arrastaram, meio carregaram o cadáver para fora da cabina.

- Pegue o quarto do amanhecer, Vinck. E Ginsel, você é vigia da proa.

- Sim, senhor.

Blackthorne voltou ao convés.

Viu que Hendrik ainda estava acordado, que o navio estava em ordem. O vigia substituído, Salamon, cambaleou à sua frente, mais morto do que vivo, os olhos inchados e vermelhos por causa do vento. Blackthorne atravessou o convés até a outra porta e desceu. O passadiço levava à grande cabina na popa, que era alojamento e paiol do capitão-mor. Essa cabina ficava a estibordo, e a outra, a bombordo, geralmente se destinava aos três imediatos.

Agora era compartilhada por Baccus van Nekk, o chefe dos mercadores, Hendrik, o terceiro imediato, e o rapaz, Croocq. Estavam todos muito doentes.

Dirigiu-se para a cabina grande. O capitão-mor, Paulus Spillbergen, estava deitado semiconsciente no beliche. Era um homem pequeno, corado, normalmente muito gordo, mas agora muito magro, a pele da barriga pendendo frouxamente em dobras. Blackthorne pegou um frasco de água de uma gaveta secreta e ajudou-o a tomar um pouco.

- Obrigado - disse Spillbergen fracamente. - Onde está a terra? Onde está a terra?

- À frente - replicou o outro, já sem acreditar nisso, depois guardou o frasco de água, fez-se surdo aos lamentos e partiu, sentindo renovar-se o ódio pelo capitão.

Há quase um ano, exatamente, haviam atingido a Terra do Fogo, com ventos favoráveis à travessia do desconhecido no estreito de Magalhães. Mas o capitão-mor ordenara um desembarque para procurar ouro e riquezas.

- Jesus Cristo, olhe para terra, capitão-mor! Não há riqueza alguma nesses ermos.

- A lenda diz que é rica em ouro e podemos reivindicar a terra para a gloriosa Neerlândia.

- Os espanhóis têm soldados aqui há cinqüenta anos.

Talvez. Mas talvez não tão ao sul, piloto-mor.