— Mas ele se matou depois, ou pelo menos tentou. Um matador de aluguel faria isso?
Mikael refletiu um instante. Seu olhar cruzou com o da redatora-chefe.
— Sim, se tiver setenta e oito anos e, talvez, nada a perder. Ele está envolvido nisso tudo e, depois de cavarmos bastante, nós vamos conseguir provar.
Malu Eriksson observou com atenção o semblante de Mikael. Nunca o tinha visto tão friamente seguro e decidido. De repente, sentiu um arrepio. Mikael notou a reação dela.
— Outra coisa. Nós agora não estamos jogando contra um bando de criminosos, mas contra uma autoridade de Estado. A coisa vai esquentar.
Malu concordou com a cabeça.
— Nunca pensei que isso fosse tão longe. Malu, se você quiser tirar o time de campo, é só dizer.
Ela hesitou um instante. Perguntou-se o que Erika Berger teria respondido. Então, desafiadoramente, disse não com a cabeça.
II. HACKER REPUBLIC 1º. A 22 DE MAIO
Uma lei irlandesa do ano 697 proíbe as mulheres de serem soldados — o que significa que, antes disso, as mulheres de fato foram soldados. Como exemplo de povos que, em diferentes momentos da história, tiveram mulheres soldados, podemos mencionar, entre outros, os árabes, os berberes, os curdos, os rajput, os chineses, os filipinos, os maoris, os papuas, os aborígenes australianos, os micronésios e os índios americanos.
São abundantes as lendas de temíveis guerreiras na Grécia antiga. Essas histórias falam de mulheres treinadas desde a infância na arte da guerra, no manejo das armas e nas privações físicas. Viviam separadas dos homens e iam para a guerra com seus próprios regimentos. São abundantes nessas histórias trechos indicando que elas venciam os homens nos campos de batalha. Na literatura grega, as amazonas são mencionadas, por exemplo, na llíada de Homero, narrativa que data de cerca de sete séculos antes de Cristo.
E também aos gregos que devemos o termo "amazonas". A palavra significa, literalmente, "sem peito". A explicação que costuma ser difundida é que elas praticavam a ablação do seio direito para melhor estenderem o arco. Embora dois dos mais importantes médicos gregos da história, Hipócrates e Galiano, concordem que tal operação de fato aumentava a capacidade de manejo das armas, não se sabe ao certo se ela era mesmo praticada. Oculta-se aí um ponto de interrogação lingüístico — não é certo que o prefixo "a" de "amazona" signifique de fato "sem", e foi sugerido que significaria justamente o contrário — de que a amazona era uma mulher com seios particularmente volumosos. Não existe nenhum exemplo, em museu algum, de uma imagem, um amuleto ou uma estátua representando uma mulher desprovida do seio direito, e, fosse a lenda verídica, esse deveria ter sido um tema freqüente.
8. DOMINGO 15 DE MAIO – SEGUNDA-FEIRA 2 DE MAIO
Erika Berger inspirou fundo antes de abrir a porta do elevador e entrar na redação do Svenska Morgon-Posten. Eram 10h 15. Estava discretamente vestida com uma calça preta, um pulôver vermelho e um casaco escuro. O tempo, naquele primeiro dia de maio, estava magnífico, e ao atravessar a cidade ela observara que o movimento operário estava reunindo suas tropas. Constatara que, no que lhe dizia respeito, não participava de um desfile de 1º. de Maio havia mais de vinte anos.
Por um rápido instante, deixou-se ficar sozinha e invisível em frente ao elevador. Era o primeiro dia em seu novo local de trabalho. De onde estava, enxergava boa parte da redação central, com a editoria de Atualidades no meio. Ergueu um pouco o olhar e viu as portas envidraçadas da sala do redator--chefe que, pelo próximo ano, seria sua.
Não estava totalmente convencida de que era a pessoa certa para dirigir a monstruosa organização que o Svenska Morgon-Posten constituía. Era um passo gigantesco entre a pequena Millennium, com seus cinco funcionários, e um jornal diário que empregava oitenta jornalistas e outros noventa profissionais, incluindo administração, pessoal técnico, designers gráficos, fotógrafos, área comercial, distribuição e tudo mais relacionado à produção de um jornal. Somava-se a isso uma editora, uma empresa de produção e uma empresa de gerenciamento. Ao todo, mais de duzentas e trinta pessoas.
Por um breve instante, perguntou-se se não tinha cometido um erro monumental.
Então a recepcionista mais velha percebeu quem acabava de chegar à redação e saiu de trás de seu balcão, aproximando-se com a mão estendida.
— Senhora Berger. Seja bem-vinda ao SMP.
— Obrigada. Bom dia.
— Meu nome é Beatrice Sahlberg. Seja bem-vinda entre nós. Vou levá-la ao redator-chefe, o senhor Morander... enfim, quero dizer, ao redator-chefe que vai deixar o cargo.
— Obrigada, mas vejo que ele está ali no aquário — disse Erika, sorrindo. — Acho que posso achar o caminho. De qualquer modo, obrigada.
Atravessou a redação num passo rápido e observou que o burburinho diminuía um pouco. Sentiu de repente todos os olharem se voltarem para ela. Deteve-se diante da editoria de Atualidades semi-vazia e meneou cordialmente a cabeça.
— Vamos ter tempo de nos apresentarmos daqui a pouco — disse e, prosseguindo, foi bater na porta envidraçada.
Com cinqüenta e nove anos, Hâkan Morander, redator-chefe demissionário, passara doze anos no aquário em frente à redação do SMP. Como Erika, ele viera de outro veículo e fora cuidadosamente escolhido — também fizera, portanto, o trajeto que ela acabava de percorrer para ir ter com ele. Olhou-a perturbado, deu uma olhada no relógio e se levantou.
— Bom dia, Erika — cumprimentou. — Achei que você só começaria na segunda-feira.
— Não agüentei ficar mais um dia em casa, portanto aqui estou. Morander estendeu a mão.
— Bem-vinda. Estou feliz por você assumir o meu lugar.
— E a sua saúde, como vai? — perguntou Erika.
Ele deu de ombros. Beatrice, a recepcionista, entrou trazendo café e leite.
— Tenho a impressão de já estar funcionando em meia fase. Na verdade, prefiro não falar sobre isso. A gente passa a vida se sentindo um adolescente imortal e, de repente, só tem pouquíssimo tempo pela frente. E uma coisa é certa: não pretendo desperdiçar esse pouco tempo aqui dentro deste aquário.
Inconscientemente, ele esfregou o peito. Seus problemas cardiovasculares eram o motivo de sua súbita demissão e de Erika ter de começar vários meses antes da data combinada a princípio.
Erika se virou e contemplou a paisagem das mesas da redação. Estavam semi-ocupadas naquele feriado. Um jornalista e um fotógrafo dirigiam-se ao elevador, decerto para irem cobrir o desfile de 1º. de Maio, ela pensou.
— Se eu estiver atrapalhando, ou se você estiver ocupado, é só dizer que eu vou embora.
— Hoje o meu trabalho é escrever um editorial de quatro mil e quinhentos caracteres sobre os desfiles do 1- de Maio. Já escrevi tantos que posso fazer isso até dormindo. Se os sociais-democratas querem declarar guerra à Dinamarca, tenho de explicar no que eles estão errados. Se os sociais-democratas querem evitar a guerra com a Dinamarca, tenho de explicar no que eles estão errados.
— Dinamarca? — perguntou Erika.
— Pois é, parte da mensagem do 1- de Maio fala do conflito da questão da integração. E, seja lá o que digam, os sociais-democratas estão sempre errados.
Ele caiu na risada.
— Você me parece bem cínico — disse Erika.
— Bem-vinda ao Svenska Morgon-Postenl
Erika nunca tivera nenhuma opinião especial sobre Hâkan Morander. Ele detinha um poder anônimo em meio à elite dos diretores de redação. Quando lia seus editoriais, ela o achava tedioso, conservador e um especialista em lamentações contra os impostos, um típico liberal militando pela liberdade de expressão, mas nunca tivera a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente ou de ter contato com ele.