— Me fale sobre o trabalho — disse ela.
— Eu saio no final de junho. Vamos trabalhar dois meses juntos, por isso me permiti tratá-la logo com informalidade, é uma regra da casa. Você vai descobrir coisas positivas e negativas a meu respeito. Sou um cínico, você tem razão, de modo que meu olhar se volta, principalmente, acho, para as coisas negativas.
Ele se levantou e ficou ao lado dela, diante do vidro.
— Você vai perceber que fora deste aquário você tem um certo número de adversários — redatores-chefes diurnos e alguns veteranos, entre os redatores, que criaram seus próprios imperiozinhos ou clubes particulares dos quais você não vai poder participar. Vão tentar forçar os limites, impor suas manchetes e visões pessoais; cabe a você ser rigorosa para conseguir resistir.
Erika meneou a cabeça.
— Os redatores-chefes da noite, Billinger e Karlsson... são um capítulo à parte. Eles se odeiam e, por sorte, não formam uma equipe, mas se comportam como se fossem responsáveis pela publicação e redatores-chefes. Na editoria de Atualidades, você tem o Lukas Holm, com quem, necessariamente, vai ter muito contato. Tenho certeza de que vocês vão se atritar mais de uma vez. Na verdade, ele é quem produz diariamente o SMP. Temos aqui jornalistas que são legítimas prima-donas e outros que na verdade deveriam estar aposentados.
— Há algum colaborador decente no meio disso tudo? Morander caiu na risada.
— Sim. Mas cabe a você descobrir com quem vai se entender. Temos alguns jornalistas que são mesmo muito bons.
— E quanto à direção?
— O Magnus Borgsjõ é o presidente do conselho administrativo. Foi ele quem a contratou. É cheio de charme, metade velha escola, metade renovador, mas, antes de mais nada, é quem decide. Junte a isso alguns membros do conselho, vários deles oriundos da família proprietária do jornal que mais parecem figurantes, e outros que agitam como profissionais de conselhos administrativos.
— Você não parece muito satisfeito com o conselho administrativo.
— Cada um na sua. Você produz o jornal. Eles cuidam das finanças. Para todos os efeitos, eles não se metem no conteúdo do jornal, mas sempre surgem umas situações problemáticas. Para ser bem sincero, Erika, você vai passar alguns apuros.
— Por quê?
— A tiragem baixou praticamente cento e cinqüenta mil exemplares desde a belle époque dos anos 1960, e o SMP está a ponto de começar a operar no vermelho. Já racionalizamos e eliminamos mais de cento e oitenta cargos de 1980 para cá. Passamos para o formato tablóide — o que já devíamos ter feito há vinte anos. O SMP ainda está entre os grandes jornais, mas falta pouco para cairmos para a segunda divisão. Se é que já não caímos. __Mas, então, por que me escolheram? — perguntou Erika.
— Porque a idade média dos leitores do SMP é de cinqüenta anos ou mais, e os leitores na faixa dos vinte anos são praticamente zero. O SMP precisa se renovar. E o raciocínio da direção foi chamar o redator-chefe mais improvável que se pudesse imaginar.
— Uma mulher?
— Não qualquer mulher. A mulher que derrubou o império Wennerstrõm e é aclamada como a rainha do jornalismo investigativo, com fama de ser dura na queda. Ponha-se no lugar deles. É irresistível. Se você não conseguir renovar o jornal, ninguém mais conseguirá. O SMP não está, portanto, contratando apenas Erika Berger, mas, principalmente, a reputação de Erika Berger.
Mikael Blomkvist saiu do Café Copacabana, ao lado do cinema Kvartersbion em Hornstull, pouco depois das duas da tarde. Pôs os óculos escuros e estava chegando ao Passeio de Bergsund, a caminho da estação de metrô, quando avistou o Volvo cinza estacionado na esquina. Continuou andando sem alterar o passo e constatou que a placa era a mesma e que não havia ninguém no carro.
Era a sétima vez em quatro dias que ele reparava naquele carro! Não sabia dizer desde quando ele vinha gravitando à sua volta, a verdade é que o notara por mero acaso. Na primeira vez que viu o carro, ele estava a caminho da redação da Millennium. Era quarta-feira de manhã e o veículo estava estacionado perto do seu prédio, na Bellmansgatan. Seu olhar havia batido na placa, que começava com as letras KAB, O que lhe chamara a atenção já que aquele era o nome da empresa inativa de Alexander Zalachenko, a Karl Axel Bodin S.A. Provavelmente ele não teria mais pensado no assunto se não tivesse visto o mesmo carro, com a mesma placa, horas depois, enquanto almoçava com Henry Cortez e Malou Eriksson na Medborgarplats. Dessa vez, o Volvo estava estacionado numa rua transversal à da redação da Millennium.
Perguntou-se vagamente se estava ficando paranóico, mas passado algum tempo, naquela mesma tarde, quando foi visitar Holger Palmgren no centro de reabilitação de Ersta, lá estava o Volvo cinza no estacionamento dos visitantes. Não podia ser apenas coincidência. Mikael Blomkvist começou a vigiar os arredores. Não se surpreendeu quando, na manhã seguinte, tornou a ver o carro.
Em nenhum momento chegara a ver o motorista. Mas uma ligação para o departamento de trânsito revelou que o veículo pertencia a um certo Gõran Mârtensson, de quarenta anos, residente na Vittangigatan, em Vállingby. Uma rápida pesquisa revelou que Gõran Mârtensson era consultor de empresas, tinha seu próprio negócio, com uma caixa postal por endereço, na Fleminggatan sobre Kungsholmen. Por volta dos dezoito anos, em 1983, prestara o serviço militar numa unidade especial da defesa costeira, ingressando em seguida na Defesa. Fora promovido a tenente antes de se demitir, em 1989, com o intuito de mudar de rumo, e entrara para a Escola de Polícia em Solna. De 1991 a 1996, trabalhara na polícia de Estocolmo. Em 1997, desaparecera e, em 1999, abrira sua empresa.
Conclusão: Sapo.
Mikael mordeu o lábio inferior. Um jornalista investigativo sério podia ficar paranóico por muito menos. Mikael concluiu que estava sob discreta vigilância, e realizada com tal inabilidade que ele tinha percebido.
Mas será que era mesmo inábil? Só tinha notado o carro por causa da placa, que por acaso tinha um significado para ele. Se não fosse pelo KAB, não teria sequer reparado.
Na sexta-feira, KAB se fez notar por sua ausência. Mikael não tinha certeza absoluta, mas achava que talvez nesse dia tivesse tido a companhia de um Audi vermelho, cuja placa não conseguiu identificar. No sábado, o Volvo estava de volta.
Exatamente vinte segundos depois que Mikael Blomkvist saiu do Café Copacabana, Christer Malm ergueu sua Nikon digital e tirou, do seu lugar à sombra da varanda do Café Rossos, uma seqüência de doze fotos do outro lado da rua. Fotografou dois homens que saíam do café logo atrás de Mikael e o seguiam em frente à Kvartersbion.
Um deles era de uma meia-idade difícil de definir, mais para jovem do que para velho, cabelos loiros. O outro parecia ser mais velho, tinha cabelos finos de um loiro ardente e usava óculos escuros. Ambos vestiam jeans e jaquetas de couro escuras.
Separaram-se ao chegar ao Volvo cinza. O mais velho abriu a porta, enquanto o mais jovem seguiu Mikael Blomkvist a pé na direção do metrô.
Christer Malm largou a máquina fotográfica e deu um suspiro. Não sabia por que Mikael o chamara a um canto e insistira que ele desse uma volta pelo bairro do Copacabana no domingo à tarde e procurasse um Volvo cinza com determinada placa. Ele teria que se posicionar de modo a conseguir fotografar a pessoa que, segundo Mikael, muito provavelmente iria abrir a porta do carro pouco depois das três horas. Ao mesmo tempo, tinha que ficar de olhos bem abertos para tentar descobrir se alguém seguia Mikael Blomkvist.
Aquilo estava com todo o jeito de um novo episódio das aventuras do Super-Blomkvist. Christer Malm sempre ficava na dúvida se Mikael Blomkvist era um paranóico por natureza ou se tinha talentos extrassensoriais. Desde os acontecimentos de Gosseberga, Mikael andava extremamente fechado e avesso à comunicação. Isso não tinha nada de estranho, claro, já que ele estava trabalhando numa matéria complexa — Christer já observara a mesma obsessão e os mesmos segredinhos durante o caso Wennerstrôm, mas dessa vez era ainda mais evidente.