Por volta do meio-dia da quarta-feira, três dias depois de Erika Berger ter assumido o cargo de redatora-chefe no SMP, ainda sob a orientação do redator-chefe Hâkan Morander, ele morreu. Ele passara a manhã no aquário enquanto Erika, acompanhada do assistente de redação Peter Fredriksson, participava de uma reunião com a equipe de Esportes para conhecer os colaboradores e avaliar como a editoria funcionava. Fredriksson tinha quarenta e cinco anos e, como Erika Berger, era relativamente novo no SMP. Fazia apenas quatro anos que trabalhava no jornal. Era taciturno, de modo geral competente e agradável, e Erika já resolvera contar com os conhecimentos de Fredriksson quando assumisse o comando do barco. Ela gastava boa parte de seu tempo tentando definir em quem confiar e quem integrar de imediato no seu novo esquema. Fredriksson, definitivamente, era um dos candidatos. Estavam retornando à área central da redação quando viram, no aquário, Hâkan Morander se levantar e se aproximar da porta.
Parecia estupefato.
Então ele se curvou e agarrou o encosto de uma cadeira por alguns segundos, desabando em seguida no chão.
Já estava morto quando a ambulância chegou.
O clima da redação durante a tarde foi confuso. O presidente do conselho administrativo, Magnus Borgsjõ, chegou por volta das duas horas e reuniu todos os colaboradores para uma rápida homenagem. Falou sobre Morander, que dedicara os últimos quinze anos de sua vida ao jornal, e sobre o preço que o jornalismo às vezes cobrava. Propôs um minuto de silêncio. Depois olhou inseguro à sua volta, como se não soubesse direito como continuar.
Morrer no local de trabalho não é comum — é mesmo bastante raro. É de bom-tom se retirar para morrer. Desaparecer na aposentadoria ou no sistema de saúde e um dia, de repente, virar assunto de conversa na cafeteria da empresa. "Por falar nisso, você viu que o velho Karlsson morreu na sexta-feira? E, do coração. O sindicato decidiu mandar uma coroa de flores para o enterro." Morrer no local de trabalho, na frente dos colegas, incomoda muito mais. Erika percebeu o choque que pairava sobre a redação. O SMP estava sem leme. De repente, se deu conta de que diversos funcionários olhavam para ela. A carta desconhecida.
Sem ter sido convidada e sem saber de fato o que dizer, deu uma tossidinha, um passo à frente e falou com voz forte e segura.
— Conheci o Hâkan Morander há apenas três dias. E pouco tempo, mas, pelo pouco que pude observar, posso dizer com toda a sinceridade que gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-lo melhor.
Fez uma pausa quando viu, pelo canto do olho, que Borgsjõ a observava. Parecia surpreso por ela ter tomado a palavra. Ela deu mais um passo à frente. Não sorria. Você não pode sorrir. Iria parecer insegura. Ela ergueu um pouco a voz.
— O falecimento repentino de Morander vai criar problemas aqui na redação. Estava previsto que eu o sucedesse daqui a dois meses, e eu gostava da idéia de ter mais tempo para absorver a experiência dele.
Percebeu que Borgsjõ abria a boca para falar.
— Mas não é assim que vai ser, e durante algum tempo nós vamos passar por algumas mudanças. Acontece que o Morander era redator-chefe de um jornal diário, e esse jornal terá de sair amanhã. Neste momento, temos nove horas até a última impressão, e quatro horas até a última prova da página dos editoriais. Posso perguntar... quem de vocês era o melhor amigo e confidente de Morander?
Houve um breve silêncio enquanto os funcionários se entreolhavam. Por fim, Erika escutou uma voz à sua esquerda.
— Acho que era eu. Gunder Storman, tenho sessenta e um anos, sou assistente de redação da página dos editoriais e estou há trinta e cinco anos no SMP.
— Alguém precisa escrever o obituário do Morander. Não posso fazer isso... seria muita presunção da minha parte. Você se sente capaz de escrever esse texto?
Gunder Storman hesitou um instante, depois assentiu com a cabeça.
— Eu me encarrego disso.
— Vamos usar a página dos editoriais inteira e tirar todo o resto. Gunder concordou com a cabeça.
— Precisamos de fotos...
Ela olhou à direita para o editor de fotografia, Lennart Torkelsson. Ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.
— Precisamos pôr mãos à obra. Pode haver alguma turbulência nos próximos dias. Quando eu precisar de ajuda para tomar decisões, vou consultá-los e confiar na competência e experiência de vocês. Vocês sabem como fazer este jornal, ao passo que eu ainda vou ter que passar algum tempo no banco da escola.
Voltou-se para Peter Fredriksson, o assistente de redação.
— Peter, o Morander comentou que tinha absoluta confiança em você. Você será o meu mentor nos próximos dias, e vai ficar um pouco mais atarefado que de costume. Vou te pedir para ser meu conselheiro. Tudo bem para você?
Ele fez que sim com a cabeça. O que mais poderia fazer? Voltou-se novamente para o Editorial.
— Outra coisa... hoje de manhã o Morander estava redigindo o editorial. Gunder, você poderia ver no computador dele se ele tinha acabado? Mesmo que não esteja totalmente pronto, vamos publicá-lo. É o último editorial de Hâkan Morander e seria vergonhoso não publicá-lo. O jornal em que estamos trabalhando hoje ainda é o jornal de Hâkan Morander.
Silêncio.
— Se vocês sentirem necessidade de fazer uma pausa para pensar nele, façam, sem culpa nenhuma. Vocês sabem quais são os deadlines.
Silêncio. Ela reparou que algumas pessoas meneavam de leve a cabeça em sinal de aprovação.
— Bem, ao trabalho todo mundo — disse ela em voz baixa.
Jerker Holmberg afastou as mãos num gesto de impotência. Jan Bublanski e Sonja Modig estavam com uma expressão cética e Curt Bolinder com uma expressão neutra. Os três contemplavam o resultado do inquérito preliminar que Holmberg concluíra naquela manhã.
— Nada? — disse Sonja Modig. Ela parecia surpresa.
— Nada — disse Holmberg, balançando a cabeça. — O relatório do legista chegou hoje de manhã. Nada indica que não tenha sido mesmo suicídio por enforcamento.
Seus olhares percorreram as fotografias tiradas na sala da casa de campo de Smâladarõ. Tudo indicava que Gunnar Bjõrck, chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros da Sapo, prendera uma corda no gancho do lustre, passara-a em volta do pescoço e, resolutamente, chutara o banquinho a uma distância de vários metros. O médico-legista tinha hesitado quanto à hora exata da morte, mas acabara definindo que fora na tarde de 12 de abril. Bjõrck fora encontrado no dia 17 por Curt Bolinder. Bublanski tentara entrar em contato com Bjõrck várias vezes, acabara se irritando e mandara Bolinder ir buscá-lo.
Em algum momento entre essas datas, o gancho se soltara do teto com o peso, e o corpo caíra no chão. Bolinder vira Bjõrck através de uma janela e dera o alerta. Bublanski e os outros que foram até o local tinham, de saída, considerado a casa como o cenário de um crime; tiveram a impressão que Bjõrck tinha sido garroteado por alguém. Em seguida, a equipe técnica descobriu o gancho no teto. Coubera a Jerker Holmberg a tarefa de estabelecer de que modo Bjõrck tinha morrido.
— Nada indica que tenha havido um crime nem que Bjõrck estivesse com alguém naquele momento — disse Holmberg.
— O lustre...
— O lustre tem as digitais do proprietário da casa — que o instalou há dois anos — e as do próprio Bjõrck. O que mostra que ele tirou a lâmpada.
— De onde saiu a corda?
— Do mastro do pavilhão atrás da casa. Alguém cortou mais de dois metros da corda. Havia uma faca no peitoril da janela, em frente à porta do terraço. O proprietário diz que a faca era dele. Ele geralmente a guardava numa caixa de ferramentas debaixo da pia. As digitais de Bjõrck estão tanto no cabo e na lâmina como na caixa de ferramentas. .— Humm — fez Sonja Modig.
— Qual era o tipo de nó? — perguntou Curt Bolinder.
— Eram nós comuns. O nó corrediço propriamente dito não passa de um simples laço. Essa talvez seja a única coisa meio estranha. O Bjõrck velejava e sabia dar nós de verdade. Mas vai saber se um homem prestes a se suicidar se dá ao trabalho de pensar em nós.