Annika também reparara que Lisbeth Salander às vezes parecia mergulhada em uma profunda depressão e não manifestava nenhum interesse aparente em resolver sua situação e seu futuro. Parecia simplesmente não entender — ou não estava nem aí — que para Annika a única possibilidade de oferecer uma defesa adequada era se inteirar dos fatos. Ela não podia trabalhar no escuro.
Lisbeth Salander era teimosa e fechada. Fazia longas pausas para pensar e em seguida expressava com precisão o pouco que dizia. Com freqüência não respondia a coisa alguma, ou às vezes respondia de repente a uma pergunta que Annika fizera vários dias antes. Durante os interrogatórios da polícia, Lisbeth Salander ficara sentada em sua cama sem dizer uma palavra, o olhar fixo à frente. Salvo uma exceção, não trocara nenhuma palavra com os policiais. A exceção foi quando o inspetor Marcus Ackerman lhe perguntou o que ela sabia sobre Ronald Niedermann; ela então olhara para ele e respondera às perguntas com precisão. Assim que ele mudou de assunto, ela se desinteressara totalmente e voltara a olhar fixo para a frente.
Annika estava preparada para que Lisbeth não dissesse nada à polícia. Por princípio, ela não falava com autoridades. O que, no atual caso, era compreensível. Embora Annika tivesse repetidamente encorajado sua cliente a responder as perguntas da polícia, no fundo estava muito satisfeita com o silêncio compacto de Salander. O motivo era simples. Era um silêncio coerente. Assim não poderiam acusá-la de nenhuma mentira ou raciocínios contraditórios capazes de causar má impressão no processo.
Mesmo preparada, porém, para o silêncio, Annika se perturbou ao ver o quanto ele era inabalável. Quando ficaram a sós, perguntou a Lisbeth por que ela se negava tão ostensivamente a falar com a polícia.
— Eles vão desvirtuar tudo o que eu disser e usar contra mim.
— Mas se você não se explicar, vai ser condenada.
— Azar, que seja. Não tenho nada a ver com esta confusão. Se eles quiserem me condenar, não é problema meu.
Para Annika, Lisbeth Salander fora contando aos poucos, mesmo que tivesse sido preciso arrancar dela, quase tudo que se passara em Stallarholmen. Tudo, menos uma coisa. Ela não explicou como Magge Lundin levara uma bala no pé. Por mais que Annika perguntasse e implorasse, Lisbeth Salander apenas a encarou com um ar cínico e esboçou seu sorriso enviesado.
Ela também contou o que acontecera em Gosseberga. Mas sem mencionar por que tinha ido atrás do pai. Teria ido lá para matá-lo — como sugeria a procuradora — ou para tentar fazê-lo cair em si? Do ponto de vista jurídico a diferença era considerável.
Quando Annika tocou no assunto do antigo tutor, o advogado Nils Bjurman, Lisbeth mostrou-se ainda mais lacônica. Sua resposta-padrão era que ela não o matara e que isso tampouco constava nas acusações que lhe faziam.
E quando Annika chegou ao ponto central de toda a trama, o papel desempenhado pelo Dr. Peter Teleborian em 1991, Lisbeth se transformou numa compacta parede de silêncio.
Esta história não vai dar certo, constatou Annika. Se a Lisbeth não confiar em mim, vamos perder a causa. Preciso falar com o Mikael.
Lisbeth Salander estava sentada na beira da cama, olhando pela janela. Dali ela via a fachada que ficava do outro lado do estacionamento. Permanecera imóvel, sem ser incomodada, durante mais de uma hora depois que Annika Giannini se levantara e fora embora batendo a porta, furiosa. A dor de cabeça tinha voltado, mas inofensiva e distante. Em compensação, sentia-se pouco à vontade.
Estava irritada com Annika Giannini. De um ponto de vista pragmático, podia entender por que sua advogada a pressionava para obter detalhes sobre seu passado. Racionalmente, entendia por que Annika precisava dispor de todos os fatos. Mas não tinha a menor vontade de falar sobre seus sentimentos ou suas ações. Achava que sua vida só dizia respeito a si mesma. Não tinha culpa se seu pai era um sádico patológico e um assassino. Não tinha culpa se seu irmão era um legítimo açougueiro. E, graças a Deus, ninguém sabia que era seu irmão, pois do contrário seria mais um ponto contra ela na avaliação psiquiátrica que tinha pela frente. Ela não matara Dag Svensson e Mia Bergman. Não era ela que tinha designado um tutor que se revelara um porco e que a violentara.
No entanto, era a vida dela que eles queriam revirar, e era dela que vinham exigir explicações e desculpas por ter se defendido.
Queria ser deixada em paz. Afinal, ela é que era obrigada a conviver consigo mesma. Não esperava que ninguém se tornasse seu amigo. Essa Maldita Annika Giannini provavelmente estava do seu lado, mas era uma amizade profissional, já que ela era uma advogada. O Maldito Super-Blomkvist estava lá fora, em algum lugar — Annika não falava muito sobre o irmão e Lisbeth nunca perguntava. Não esperava que ele se desdobrasse particularmente por ela agora que o assassinato de Dag Svensson estava solucionado e que ele fechara a sua matéria.
Perguntava-se o que Dragan Armanskij pensava a seu respeito depois de tudo o que acontecera.
Perguntava-se como Holger Palmgren via a situação.
Segundo Annika Giannini, ambos estavam do seu lado, mas isso eram apenas palavras. Eles nada podiam fazer para resolver seus problemas pessoais.
Perguntava-se o que Miriam Wu sentia por ela.
Perguntava-se o que ela sentia por si mesma, e acabou se dando conta de que a vida lhe inspirava, antes de mais nada, indiferença.
De súbito, foi interrompida pelo vigia da Securitas, que enfiou a chave na fechadura e fez entrar o Dr. Anders Jonasson.
— Boa noite, senhorita Salander. Como está se sentindo?
— Tudo bem — disse ela.
Ele conferiu sua ficha e constatou que Lisbeth não tinha mais febre. Ela se acostumara com as visitas dele, que aconteciam duas ou três vezes por semana. Em meio a todas as pessoas que a manipulavam e tocavam, ele era o único em quem ela sentia um pouco de confiança. Em nenhum momento tivera a impressão de que ele a olhava atravessado. Entrava no quarto, conversava um pouco e observava como estava seu corpo. Não fazia perguntas sobre Ronald Niedermann ou Alexander Zalachenko, nem sobre sua eventual loucura, e não perguntava por que a polícia a mantinha a sete chaves. Parecia se interessar exclusivamente pela condição de seus músculos, pela recuperação de seu cérebro e por seu estado geral. Desde o começo ele a tratara por você", e ela também o tratava por "você"; parecia natural.
Além disso, ele tinha literalmente fuçado seu cérebro. Uma pessoa que fazia isso merecia ser tratada com respeito. Ela se deu conta, para sua imensa surpresa, que achava as visitas de Anders agradáveis, ainda que ele a tocasse e analisasse os gráficos da temperatura.
— Posso dar uma olhada em você?
Ele realizou o exame rotineiro, examinou suas pupilas, escutou sua respiração, tomou seu pulso e conferiu a pressão.
— Como é que eu estou? — ela perguntou.
— Está a caminho da recuperação total, isso é certo. Mas deve se esforçar mais nos exercícios físicos. E está cocando a casquinha na cabeça. Tem que parar com isso.
Ele fez uma pausa.
— Posso fazer uma pergunta pessoal?
Ela o olhou com o rabo do olho. Ele esperou até que ela dissesse sim com a cabeça.
— Essa tatuagem, o dragão... eu não vi inteira, mas dá para perceber que é imensa e cobre boa parte de suas costas. Por que você fez isso?
— Você não viu o dragão? Ele sorriu de repente.
— Quero dizer, eu vi de longe, mas quando você esteve totalmente nua na minha frente eu estava mais preocupado em deter as hemorragias e extrair as balas do seu corpo, com coisas assim.